MUITO ALÉM DO SOMÁTICO? Atualização em 29.06.2015
INTRODUÇÃO
“Fisicalismo é, basicamente, a
tese segundo a qual não pode haver propriedades mentais na ausência de
propriedades físicas.” DENNETT, Daniel, Brainchildren,
Ed. Penguin, London 1998.
No meu
entender, este talvez seja o capitulo mais importante deste livro: o de procurar estabelecer a verdadeira natureza da “parte imaterial” do ser
humano, ou seja, do fenômeno apelidado de ESPÍRITO, ALMA, PSICOLÓGICO,
MENTE que, em tese, para uns está além do somático e, para outros, está mais
próximo do somático do que se pensa.
“A ideia de que
processos mentais poderiam ser estudados à luz de um modelo computacional
apresentava uma boa alternativa para os dilemas metodológicos da Psicologia:
abandonar o comportamentalismo estrito sem, entretanto, incorrer na vaguidade
do introspeccionismo. Esta proposta poderia ser o paradigma para uma ciência da
mente.” (TEIXEIRA, 1998, p. 11).
A dificuldade filosófica surge quando procuramos determinar, em uma
linguagem não ambígua, o que essas referências implicam. As filosofias
tradicionais da mente podem ser divididas em duas grandes categorias: a teoria
mentalista e a teoria fisicalista. Segundo a abordagem mentalista, a mente é
uma substância não-física. Para os fisicalista, o mental não é diferente do
físico; na verdade, todos os estados, propriedades, operações e processos
mentais são, em princípio, idênticos a estados, propriedades, operações e
processos físicos.
O problema conceitual
se inicia quando, através de uma linguagem de senso comum, convertemos essas
propriedades semânticas em estados mentais, de modo a existirem
independentemente de nossos atributos neurofisiológicos, ou seja, como se esses
estados tivessem uma ontologia[1] própria e desvinculada da
matéria... Desse modo, Churchland diz que o estado qualitativo “não tem um
significado semântico para os termos de uma linguagem intersubjetiva”
(ibid. p. 104), na medida em que eles podem “variar ainda mais entre
diferentes indivíduos” (id. ibid.), podendo variar, inclusive, e até mesmo,
“entre as diferentes espécies biológicas” (id. ibid.). Não podemos
negar, portanto, que há sensações que descrevemos como medo, depressão, dor,
mas nem por isso podemos descrevê-las como se estivessem separadas de nossa
estrutura fisiológica. Atribuir a essas sensações uma natureza unicamente
mental conduz no erro de tratá-las como algo não constitutivo e tributário de
nossos aparatos físicos, mas sim como provenientes de um domínio não físico.
Contudo, podemos compreender a introspecção considerando-a, não como
característica de uma substância mental, mas como proveniente de nossas
condições neurofisiológicas.”
Assim, "talvez
tenhamos que nos acostumar com a ideia de que o estado mental tem localização
anatômica e que o estado do cérebro tem propriedades semânticas"
(Churchland, p. 60).
INVESTINDO NA CO-AUTORIA
Para ajudar-me no
desenvolvimento do tema e, ao mesmo tempo, resgatar parte de uma obra primorosa, hoje, um tanto esquecida, usarei como referência o livro DOUCTORS OF
THE MIND[2]
(Médicos da Mente) da escritora norte-americana Marie Beynon Ray - cujas transcrições aparecerão entre aspas e na
cor azul.
PRIMÓRDIOS DO IMATERIAL
“Muito antes da alvorada da História, as criaturas que primeiro se
revestiram de humanidade, sentiram dentro de si a presença de algo que as
diferenciava de todos os outros animais, algo inexplicável e provavelmente
imortal.”
IMATERIAL É SINÔNIMO DE ALMA?
Os maiores pensadores de cada século tentaram explicar a natureza daquilo
que “sentiam” como parte ontológica do ser humano - essencial e superior dentro de si e
inexistente nos demais animais. Influenciados (e contaminados) por tais ideias
teocráticas e antropocêntricas[3] (tudo
ditado pela religião dominante) chegaram a uma conclusão: O homem é um ser
divino, criado por deus, distinto dos outros animais, que são estúpidos e
bestiais. Por ter sido criado por deus tem um corpo
(transubstanciado do barro) e uma Alma (gerada pelo sopro de deus).[4] As duas partes são separáveis. A alma se separa do corpo após a morte e continua a existir como espírito
(que é a alma desencarnada). A aceitação desta crença, impediu, por muito tempo, que os
homens mais inteligentes da época procurassem no corpo a origem do espírito.
Tangível versus intangível
Acredito que a atual dissenção entre corpo x alma (ou
fisicalismo e mentalismo), refletia (e reflete) o antagonismo secular entre o tangível
e o intangível.
Enquanto os defensores do tangível afirmam: “Você não tem um
corpo. Você é o seu corpo, o que você tem é uma mente que deixa de existir
quando o corpo morre”, os do intangível discordam: “Você não tem uma alma.
Você é a sua alma, o que você tem é um corpo que morre e apodrece libertando a alma.”
O tangível se fundamento no corpo e é afinado com o chamado
“materialismo” que se sustenta em evidências concretas e bases experimentais.
O intangível é a antítese do tangível e tem fundamentos destituídos
de bases experimentais, "à escolha do freguês”. Costumam lidar com uma
espécie de mente independente do físico (que sobrevive ao corpo), fenômeno que chamam
de alma, espirito, regidos, habitualmente, por interpretações
místicas-religiosas, utópicas, quiméricas. Em última instância, se costuma confundi-la
com o espiritual, o teológico e até com o chamado psicologismo[5]
quando a lógica perde o controle e a imaginação passa a comandar o espetáculo
de obscurantismo, mistério e desconhecimento da realidade tangível.
Trata-se de uma discordância surgida muito antes da
existência da Medicina, como profissão, e sua origem se perde nas brumas do
tempo. Enfim, é uma querela que vem de longa data... e quão longa é esta data!
Ambos, tangível e intangível (ou corpo e mente), interessam
a medicina porque interferem no labor diagnóstico e no tratamento das doenças.
UM DIVISOR DE ÁGUAS
- ENTRA EM CENA A TEORIA DA EVOLUÇÃO DE DARWIN
“... a Origem
das Espécies, de Darwin. Livro algum jamais causou guerra mais longa e
mais amarga. Marie Beynon Ray
O que é realmente a parte imaterial do homem?
“Não existe indagação que haja Interessado ao homem com mais persistência e paixão do que a busca da origem e da natureza dessa
parte imaterial de si próprio que ele chama, diversamente. de espírito, alma e mente.”
Em busca da verdade e transitando por um leque de suposições
o homem comum, o xamã, o pajé, o
curandeiro, o charlatão, o druida,
o mago, o feiticeiro, o exorcista,
o bruxo, a fada, o milagreiro, o
mago, o benzedor, o rezador, o médium espírita e, sem dúvida, o médico de
ontem, sem ignorar o de hoje, sempre se ocuparam (e continuam se ocupando) com
a parte imaterial do homo sapiens.
“Galeno, por exemplo, situa a alma (pneuma
psíquico) no cérebro, mas não a elimina. Para ele, a alma seria dirigente do
corpo, porém ainda segundo ele não devemos consultar os deuses para descobri-la,
mas sim
um anatomista. (id. ibid.).”[6]
Na verdade, até esta data
(2015, século XXI) a resposta buscada ainda não foi plenamente respondida.
Entretanto, para Marie tudo começou a ficar mais claro depois da publicação de
A Origem das Espécies, de Charles Robert Darwin.
Eis
como ela argumenta:
“Antes de Darwin, o homem era uma criatura isolada, solitária,
recortada num fundo sem conexões, uma criatura sem passado nem futuro
biológicos.”
“Hoje, vivemos sobre um fundo evolutivo, e
nosso destino remonta ao momento da primeira vida unicelular, estendendo-se a um futuro mais distante do que o pode
conceber a imaginação mais ousada. (...) Darwin tornou indiscutível que o homem
é um animal superior, e não um anjo decaído ou um deus de imitação.
Esta perspectiva, alongando-se até à ameba,
se abriu para os psicologistas; eles imediatamente reconheceram
porque haviam realizado um progresso tão pequeno na
compreensão da natureza do
homem. Hoje, a psicologia e a psiquiatria reconhecem que o espírito humano, sem este fundo evolutivo, é totalmente
incompreensível.”
Aos defensores da
teoria darwiniana de que o corpo do homem (incluindo o cérebro) é produto de um
longo processo evolutivo juntaram-se outros homens ousados convictos de que o
corpo e a mente formam uma unidade indissolúvel; ou seja, se o corpo morre, a mente
morre com ele.
“Mantendo-se na tradição holística do pragmatismo
americano, o filósofo Richard Rorty desinteressa-se das dicotomias metafísicas como
“espírito versus matéria”,
ou as da filosofia da ciência como “mentalismo versus fisicalismo” vivências que parecem transcender a
experiência sensível; no kantismo,
constituem o estudo das formas ou leis constitutivas da razão, fundamento de
todas as especulações suprassensíveis dos tipos a totalidade cósmica, Deus ou a
alma humana, etc. Também desdenha as dicotomias epistemológicas[7]
do tipo “idealismo versus realismo”
e, por isso mesmo, Rorty sai do paradigma moderno, cuja principal invenção em
teoria do conhecimento foi a dualidade sujeito-objeto.[1]”[8]
Ainda assim, ainda
há os que contestam, contra-argumentando:
O homem é mais do que o corpo, mais do que sua química e física, mais do
que o cálcio, o carbono, o oxigênio, a eletricidade. Ele é tudo isto, mas vai
além desses elementos. Eventualmente, até aceitam que a alma tenha certa
conexão com o corpo. Mas se tratam de essências diferentes: a alma é imortal e
o corpo não.
Por outro lado, a
investigação do cérebro sempre foi difícil naqueles dias:
“Todos os órgãos,
exceto o verdadeiro, foram suspeitos de sediarem o espírito. A princípio foi o fígado, depois os rins, os
intestinos, o coração (...) Aquele órgão discreto, silencioso, inacessível, segregado no
crânio, talvez nunca tenha merecido quaisquer cogitações. (...) Aristóteles,
fisiologista... o homem mais avançado do seu tempo, acreditava que o espírito
estava estreitamente ligado com o sangue, porque a perda de sangue significava
a perda de consciência e o sangue afetado pela febre significava delírio. Por
conseguinte argumentava, sendo o coração a fonte do sangue, devia ser também a
sede do espírito. [9] Na verdade foi um
jovem aldeão, Alcmeon, quem disse que o misterioso conjunto de matéria
encerrada no crânio, que parecia não ter função particular, podia ser a sede da
razão. Mas como era um simples colono, os grandes homens de Atenas não lhe
prestaram atenção...”
Mesmo quando as
evidências confirmaram que o cérebro, e não o coração, [10] era realmente a
sede do espírito, o aprofundamento de sua investigação pouco melhorou. Por que?
Primeiro, porque era difícil arranjar um cérebro para pesquisar. Para conseguir
um exemplar, um médico teria de ter não somente uma posição social elevada, mas
também dinheiro suficiente para pagar preços exorbitantes, a pessoas sem
escrúpulos, quando precisava de um cérebro que só podia ser obtido de forma
ilegal. Para complicar, ainda mais, a ignorância e a religião trabalhavam de
mãos dadas para impedir o homem de invadir o que consideravam “o sagrado
recinto do crânio.”
Esta situação
perdurou até o fim do século XIX. Foi, então, que surgiu um cirurgião inglês
chamado Charles Bell. Um homem de sorte pois “...descobriu mais coisas sobre a anatomia e a fisiologia do cérebro, em 30
anos, do que todo o mundo médico nos 16 séculos precedentes.”
Mas como ele
conseguiu, se continuava faltando cérebros, mortos e vivos, para estudar?
Ironicamente, por causa de uma guerra. O Dr. Bell foi um cirurgião de guerra e
participou das batalhas napoleônicas o que lhe permitiu ver muitos cérebros
vivos e mortos, e deslindar muitos meandros anatômicos e fisiológicos do
sistema nervoso. Por isso, é considerado o pai da neurologia. Foi êsse o
primeiro passo para o estudo do cérebro baseado em evidências materiais.
O segundo passo importante, surgiu em 1841, na sala de operações de um
hospital de Boston, onde um jovem dentista, o Dr. William Morton, “aplicou uma droga no paciente, voltou-se para o cirurgião — as palavras
marcaram o começo de uma época na História da Medicina: “Doutor, o seu paciente
está preparado.” E o cirurgião realizou a primeira operação pública sob
anestesia (...) Assim tornou possível penetrar tanto no cérebro vivo, como no
morto.”
O próximo passo importante foi o de comparar cérebros do homo sapiens com
cérebro de macacos. E aqui, cedo outra vez a palavra a Marie, agora conversando
com o Dr. James Papez:
“Estamos no laboratório do Dr. James Papez, esse
famoso laboratório da Cornell University onde se encontra a Coleção de
Cérebros mais Primitivos.
Aqui, durante
vinte e cinco anos ou mais, o Dr. Papez tem medido, pesado, comparado estes cérebros mortos, numa tentativa
para descobrir... o quê? Alguma explicação do desconhecido em termos do
conhecido, uma espécie de ponte entre esta coisa tangível, o cérebro, e essa
intangível, o espírito.
“A evolução”,
murmura ele. “Toda vida, mesmo o cérebro do homem, é uma evolução.” E expusera
à minha frente cérebros de peixe, cérebros de macaco e cérebros de homem, para
mostrar-me o que queria dizer.
E, de repente,
digo em voz alta: “Se isto for verdade, é a história mais assombrosa do mundo! Se
for verdade! ...”
Que há nisto — pergunta ele, descansando o compasso sobre um
cérebro humano, — que explique... as campanhas de um Napoleão, as teorias de
um Copérnico, uma sonata de Beethoven, os princípios de Euclides, um poema de
Keats?
—
Mil cérebros estão
diante de mim: cérebros de sábios e cérebros de idiotas, cérebros de crianças e
cérebros de adultos, cérebros de peixes e cérebros de jacarés, cérebros de
morcegos, gatos, símios. Cérebros de embrião humano em cada fase de
desenvolvimento. Cérebros em frascos e em boiões, cérebros em delgadas fatias
em cortes transversais e longitudinais, preparados em lâminas, suspensos em
bálsamo.
O Dr. Papez passou
a vida interrogando cérebros mortos, e, como veremos, êsses cérebros às vezes
falam.
Olhemos, agora,
por cima do ombro do Dr. Papez, que está inclinado sobre um par de cérebros
minúsculos.
— Isto —
explica-me ele — é o cérebro de um peixe. E isto, o cérebro de um embrião
humano com cinco semanas de idade.
Fico olhando. É
uma coisa esquisita, em que não se pode acreditar e de que não se gosta. De
que absolutamente não se gosta. É que estes dois cérebros são tão exatamente
semelhantes que se o Dr. Papez recorrer a uma ligeira prestidigitação...
Desde esse dia, o fato da evolução nunca
mais foi discutido a sério, pelo menos por nenhum cientista. Ainda hoje,
porém, travam-se batalhas em torno do caminho seguido por ela. A religião e a
teologia retiraram-se da primeira linha de defesa para a proposição
relativamente segura de que, embora a evolução pareça, na verdade, haver
liquidado com Adão e Eva, ela não elimina Deus, necessariamente.
Darwin não foi o
primeiro cientista que concebeu a teoria da evolução. Ainda que Aristóteles e
Lamarck não houvessem existido, ele não teria sido o primeiro. Wallace atravessou
com ele a fita de chegada. Contudo, o que importa não é quem diz uma coisa pela primeira vez, senão quem a diz melhor, e nenhuma outra
exposição sobre a evolução pôde suportar comparação com a de Darwin. Ele não só
tornou
crível a evolução, como tornou impossível não acreditar nela.
Chegou mesmo a torná-la
atraente.
Ele muda várias
vezes a posição dos dois cérebros e, como quem perguntasse “Sapatinho de
Judeu, debaixo ou de cima?” ergue o olhar para mim. E, agora, não posso dizer
qual é o cérebro de peixe e qual o cérebro do embrião humano. Sacudo a cabeça.
Volta ao armário
que está atrás dele e coloca diante de mim outro par de cérebros, muito
maiores, mas que para os meus olhos, mais uma vez, são exatamente iguais.
O Dr. Papez explica:
Estes dois cérebros,
como a senhora vê, têm dois grandes hemisférios unidos por uma larga comissura. Aqui é o cerebelo, aqui o córtex cerebral, aqui o
lobo parietal. Observe a semelhança de todas as circunvoluções. Aqui fica o hipotálamo, a cama óptica, o tálamo dorsal. Todas estas coisas se apresentam em ambos os cérebros e
parecem exatamente iguais, não acha?
—
“Aqui”, digo
comigo mesma, “sem dúvida alguma, está
o cérebro dos bons e velhos vertebrados,
altamente desenvolvido. Os dois são humanos, com toda a certeza. Papez desta
vez não me enganará.”
Cérebros humanos —
respondo decididamente, quando ele me interroga com uma
sobrancelha arqueada. — Humanos, mas jovens. Assemelham-se como se fossem
gêmeos.
Papez, com aquela
sua cabeça em cúpula, com aquela penugem na calva e aqueles restos de cabelo
que se emaranham atrás, até agora não foi além de um sorriso desdenhoso; mas,
nesta altura, aprendo que mesmo um cientista cheio de pó consegue dar uma
alegre gargalhada. Papez encosta-se ao armário e sua risada faz estremecer
aqueles cérebros seculares.
Bom — diz ele,
finalmente, ainda com o rictos do riso, pois um cientista não arranja
diariamente uma risada como esta — a senhora tem 50% de razão. Um destes
cérebros é humano e, como diz, não é adulto. É, realmente, o cérebro de um
embrião, apenas com sete meses e meio de existência. E o gêmeo, como o designou
com tanta graça, é o cérebro de um macaco. Quer dizer-me agora, qual é o homem
e qual é o macaco?
Sinto vontade de
recusar-me. É melhor sair dali o mais depressa possível... antes que o lugar se
transforme num Gabinete do Dr. Galigari[11] e
eu, acocorando-me, comece a pedir
bananas.
Um erro bem perdoável -— murmura o Dr. Papez, acompanhando-me até a porta. — Eu também
costumava cometê-lo.
Na rua, não posso
deixar de pensar naqueles dois cérebros tão exatamente semelhantes: o cérebro
de um macaco e o cérebro de um homem.”
ONDE ENCONTRAR A ALMA DENTRO DO
CÉREBRO?
Hoje, aceita-se com mais
convicção que o homo sapiens e seu cérebro evoluíram a partir de organismos unicelulares.
Até aí, tudo bem... Mas, pergunto: O fato de concordamos com a evolução do
cérebro, nos obriga a relacioná-lo com a evolução da alma? Se assim for, qual é
a fonte física da alma do homem? Como preencher o hiato entre o cérebro físico
e a alma imaterial, um último laço entre nós mesmos e o resto da criação?
Mais uma vez, franqueio a
palavra a Marie:
“Sabemos que no homem existe algo — chamem-lhe alma, chamem-lhe o espírito do gênero humano,
chamem-lhe o gênio de humanidade — que nenhum outro animal possui. Êsse algo
habilita-nos a construir o Partenon[12],
ao passo que o macaco pode, na melhor das hipóteses, empilhar caixas.
Lá por 1632, um holandês[13]
inventara um instrumento que podia revelar os segredos das fendas e recessos
escondidos do corpo, mas, durante quase duzentos anos, o mundo médico, sempre
conservador, continuou olhando para o microscópio como uma simples novidade de
pequena utilidade para um médico. Foi, pois, indesculpavelmente tarde, que
afinal o assestaram sobre o cérebro.
Descobriram então que, embora o cérebro, como todos os tecidos
vegetais e animais, fosse feito de células e de seus produtos, este tecido era profundamente
diferente de qualquer outro tecido do corpo — de qualquer outro tecido do
mundo. Isto era algo absolutamente inesperado e muito estranho. Por que é que
era diferente? Com que fim?
A opinião científica
mais esclarecida sustentara, anteriormente, que o cérebro era uma glândula que
segregava o pensamento mais ou menos como as glândulas suprarrenais segregam a
adrenalina. Agora, porém, o microscópio lhes mostrava que o tecido do cérebro
era tão semelhante ao tecido glandular como de qualquer outro tecido do corpo,
e que não segregava nada, e muito menos o pensamento. Naturalmente, o passo seguinte consistiu em investigar
minuciosamente este novo e estranho tecido, para descobrir o que ele fazia e
como o fazia.
Agora, finalmente, estavam na pista certa, prontos para a grande
aventura: a busca da verdadeira fonte física do espírito do homem. Sabiam que o
cérebro era a sede da sensação, e que controlava o sistema nervoso e a
consciência. Mas seria, porventura, a fonte das faculdades superiores? E se o
fosse, onde estava a prova? O cérebro do macaco certamente explicava todos os
processos mentais de um macaco. Mas quanto ao cérebro do homem: explicava ele
inteiramente todos os processos mentais do homem? Se explicava, qual a prova,
onde estaria ela?”
Acreditar ou descobrir?
Qual é o único órgão do corpo
humano capaz de formar pensamentos? Até agora acredita-se que seja o cérebro.
Então, se quisermos encontrar o mecanismo neural que explique como o cérebro
“fabrica” o pensamento – poder especial que rege a superioridade do ser humano
sobre os outros animais – precisamos aprofundar a investigação do cérebro para
descobrir a base física do pensamento sem precisar acreditar na existência da
alma.
Já sabemos, nada que está
visível no cérebro do homem - bastante similar ao dos grandes macacos - explica
a sua superioridade. Nada que seja detectável nem macro nem microscopicamente.
Portanto, urge encontrar
outro caminho. Será que poderia ser a linguagem, uma função que faz a diferença
entre o homem e os demais animais? Se assim for, teríamos de procurar, no
cérebro, o mecanismo físico que a produz. Raciocinando assim, Marie construiu
um debate entre ela e interlocutores fictícios:
“Parece que ouço vocês dizerem:
Espere um minuto a linguagem... sim, ela é importante. E naturalmente uma das nossas grandes vantagens sobre os animais... Mas o que você está dizendo é que ela é, praticamente, a mesma coisa que o pensamento.
E
não é. Nem de longe!
Não?
Fiquem aí onde estão e tentem pensar qualquer coisa,
por mais elementar que seja, sem palavras. Conseguiram?
E não é só isso; o número de palavras que o indivíduo usa é a
melhor medida de sua inteligência. Quando um ser humano deixa de adquirir palavras, é porque atingiu o teto de sua inteligência[14]. Continuará pensando, mas apenas com as ideias (as palavras) que já adquiriu. Quanto maior o vocabulário de um
indivíduo, tanto maior a sua inteligência. (...) Em qualquer grupo de homens, o
teste quantitativo de vocabulário separa os chefes dos empregados. E não é só
isto: ele separa aqueles que serão chefes, daqueles que não o serão; e anos depois, os fatos
mostram que o teste é quase cem por cento exato. Verifica-se que os homens bem sucedidos, quer nas carreiras
liberais, quer no comércio, são quase, invariavelmente, aqueles que
alcançam os pontos mais altos neste teste de vocábulos. Sabendo que o “calouro” de uma escola superior comete uma média de 76 erros no teste, o diplomado 27 e o professor universitário 8, qual vocês supõem que seja a
média dos dirigentes principais das grandes companhias? ... A resposta é 7:
menos erros do que um professor! Comprova-se que mais palavras significa
melhores ideias.
Compreendemos o intelecto de Milton[15] quando ele
desenreda o céu e o inferno diante de nós, de forma profunda. E se contarmos as
palavras que usou, veremos por quê. Quinze mil palavras! Comparem isso com os poucos milhares de palavras do homem médio e as poucas centenas do homem ignorante.
Shakespeare[16],
porém, sobrepuja Milton como o Everest supera o Monte Branco, e a razão se torna evidente quando verificamos que seu vocabulário é 25 por cento maior: vinte mil palavras!
Não poderei, então, dizer agora que aquilo que deve ser
procurado pelo ousado aventureiro que se disponha a descobrir a chave de nossa
humanidade, é o mecanismo do cérebro que produz a linguagem?
Este homem surgiu, sim, e colocou o problema desta maneira:
Desejo descobrir essa região do cérebro do homem onde acontece algo que não
acontece em nenhum outro cérebro da terra; onde a barreira entre o homem e o
macaco, fina como uma membrana, se despedaça, brotando a linguagem. Desejo
descobrir a verdadeira ponte fisiológica entre o animal superior e o homem
inferior.
Será isto possível? Se o for, estaremos finalmente no bom
caminho, em nossa pesquisa em torno da sede do espírito do homem. Enquanto não soubermos onde está o espírito e o que ele é, não podemos esperar compreender como opera, na doença e na saúde, e como melhorá-lo.
E é isso o que estamos tentando descobrir.”
Apresentando Tan
“Ano, 1861. Um homem agoniza no hospital de
Bicêtre, Paris. Indigente, anônimo, que viveu da caridade pública durante vinte
um anos, e foi detestado por todas as pessoas que entraram em contato com
ele: enfermeiros, companheiros de enfermaria, médicos. Trata-se de um sujeito
de má índole, egoísta e vingativo, além de ser tão gatuno como é possível sê-lo
numa enfermaria pública.
E, sem dúvida, tem um nome: é chamado, por todos,
de Tan. Mas por que Tan? Porque durante
vinte e um anos, não pronunciou uma única palavra a não ser esta sílaba, tan. Não é que não o haja tentado. Vinte vezes por dia fica vermelho
de raiva num esforço para falar (...) Sem dúvida, conhece uma porção de
palavras que não sabe pronunciar, a maioria delas feias.
Além de ter um péssimo caráter, Tan possui apenas uma
inteligência medíocre, e ambos pioraram progressivamente durante seus vinte e
um anos em Bicêtre. Entretanto, o cérebro desta negação deverá tornar-se um dos
mais famosos da História da Humanidade.
A perna gangrenada e o
vocabulário unissilábico de Tan
“Certo dia, Tan fica tão mal
que é transferido para a enfermaria de cirurgia, despertando a atenção de um
jovem cirurgião que aos trinta e sete anos apresenta uma carreira raramente
igualada por sua rapidez e brilho, não se interessa, absolutamente, depois do
primeiro olhar, pela perna gangrenada que levou Tan até ele (compreende
imediatamente que Tan morrerá em alguns dias) mas, inexplicavelmente, mostra um
imenso interesse pelo vocabulário unissilábico de Tan.
Percebe que dispõe de poucos
dias da vida de Tan para investigar, por isso tem de trabalhar depressa.
Convoca todos os médicos, enfermeiros, doentes da mesma enfermaria, parentes
que algum dia conheceram este indigente e interroga-os interminavelmente,
tomando nota das mais Ínfimas minúcias de informação que lhe podem dar.
Depois, senta-se ao lado da
cama de Tan e lhe fala, examina-o e reexamina-o de todas as maneiras
imagináveis. Traz mesmo um ou dois médicos importantes para darem uma olhada
nele: não à perna gangrenada (que é apenas um cronômetro pendurado em Tan) mas
à garganta, ao tórax, ao rosto, à língua, aos lábios, à perna e ao braço direitos,
ambos paralisados, à face e ao olho esquerdo, paralíticos.
Submete a teste a audição, a
visão, a memória, a inteligência de Tan; fá-lo pronunciar vezes sem conta o seu
famoso tan, mas não com tanta frequência como agradaria ao próprio Tan. O
médico gostaria de passar todo o dia e toda a noite ao lado da cama de Tan,
mas, conforme declara em seu relatório, Teria sido cruel interrogá-lo
demasiado.”
Cérebro, morto,
fala?
“Seis dias depois de dar entrada na enfermaria, Tan morre. Vinte e
quatro horas após, seu cadáver está na mesa de autópsia. Vinte e sete horas
depois de sua morte, o seu cérebro, este cérebro que deverá ficar famoso, está
fora do crânio que o alojou durante mais de cinquenta anos, e pronto para a
dissecção, sobre a mesa.
Chegamos, agora, ao momento em que o jovem cirurgião, que
concentra em Tan um interesse maior do que o de quantos os conheceram, se
abanca em seu laboratório diante do cérebro desta nulidade.
Tem uma pergunta a fazer-lhe: uma das perguntas mais momentosas
que o homem fêz até hoje. E acredita que este cérebro morto pode responder o
que o cérebro vivo não pôde.
- Por que é que você está tão entusiasmado pelo
cérebro do velho? - podemos imaginar um dos seus colegas a perguntar-lhe. - O velho Tan não
pronunciou uma única palavra durante mais de vinte anos.
- Exatamente por isso é que desejo examinar o seu
cérebro.
- Por que o cérebro? Por que não as cordas vocais?
- Ora. . . porque as cordas vocais estavam bem.
- Então, a laringe, a faringe, a epiglote, o céu da
bôea. . . qualquer um dos seus órgãos articulatórios.
- Examinei todos eles. Funcionavam perfeitamente. O
seu tan era uma obra-prima
de articulação pura.
- Mas... ele não era um tanto? ... - O médico bate
de leve na testa.
- Absolutamente não. Tirei isso a limpo. Não... a sua mente era
perfeitamente sã. Capaz de pensar muito bem...
apenas não podia falar.
- Mas então, se nada de errado havia na mente dele,
por que deseja examinar o
seu cérebro? - Hum... Provavelmente está pensando em fazer alguma charlatanice com esse seu microscópio!”
Desperdício
de tempo?
“Não parece um desperdício de tempo este jovem
cirurgião sentado ali com seu microscópio e este cérebro morto, a fazer-se
estas perguntas? Se ainda fosse um cérebro vivo e estivesse num crânio de vidro, o microscópio mais poderoso
não poderia revelar os processos de pensamento e mostrar as palavras no ato de
serem fabricadas. Como, pois, encontrar a resposta num cérebro morto, mudo há
vinte anos?
‘Olhemos o cérebro’, diz o nosso jovem cirurgião,
com o cérebro de Tan na sua mesa de autópsia; e, com estas palavras, estamos no
começo de uma série de pesquisas que nos levarão a descobertas inimagináveis.
Finalmente, começamos a procurar no lugar certo, a “sede” do espírito.”
Pierre
Paul Broca, um gênio?
“Quem é este jovem pioneiro de uma nova
ciência? É Paul Broca. Ao nascer, em 1824, era um menino prodígio. Sua natureza
portentosa foi anunciada ao mundo no seu primeiro vagido, quando se viu que ele
possuía dois grandes incisivos, distinção de que participou com o prodigioso
Mirabeau e Luís XIV. A partir desse momento, atraiu constantemente a atenção
fascinada de seus contemporâneos. Entrou para o curso secundário com uma idade
que não me atrevo a mencionar, saindo aos dezessete anos com três diplomas:
bacharel em letras, em matemática e em ciências físicas. Era médico aos vinte
anos, quando muitos homens, hoje, apenas estão entrando para a Escola de
Medicina. Com vinte e quatro anos, recebia medalhas, honras, prêmios e posições:
tudo que encontravam à mão, aqueles que tinham poder para conferir recompensas.
Tornou-se famoso de tantas maneiras que é difícil acreditar na
história. Pelas brilhantes pesquisas na histologia da cartilagem e do osso, que
realizou com o seu desdenhado microscópio. Por já ter contribuído para a
ciência da cirurgia, quando estava com trinta anos, mais do que qualquer outro
homem dessa idade, em qualquer tempo, ou em qualquer país. Por ter criado a
ciência da craniologia. Por ter inventado tantos instrumentos para medir e
estudar o cérebro e o crânio, que uma simples relação deles encheria páginas:
para medi-los por dentro e por fora, sem serrar nem abrir o crânio; para
medi-los mortos ou vivos; para medir-lhes a espessura, os ângulos, os
contornos, a capacidade, o peso, o ângulo facial, a relação com a coluna
espinal. . . mais medidas do que jamais se havia pensado até então e quase
todas em que já se pensou até agora.
Por ter criado a ciência da antropologia, que
constitui pelo menos nove outras ciências. Por ter fundado a Escola, o
Laboratório, a Sociedade de Antropologia. Por ter realizado uma obra brilhante
(tudo quanto fazia era brilhante) em anatomia comparada dos primatas. Por ter
efetuado notáveis investigações em torno das funções do cérebro humano. Por ter
escrito centenas de livros e de artigos (cinquenta e três estudos somente sobre
o cérebro) sobre assuntos científicos — e nada do que escrevia era medíocre. Por ser um
eloqüente orador público.”
Trabalho,
trabalho e mais trabalho, eis o seu cotidiano
“Quando se tratava de trabalhar, não conhecia
nem o dia nem a noite. Cansado, procurava repouso em mais trabalho. Finalmente
esgotado, atirava-se a algum outro trabalho até se renovar o bastante para
prosseguir indefinidamente.
Acima de tudo estava o caráter do homem. Aqueles
que o conheceram, com tal veemência o favorecem que chegam a desafiar a nossa
capacidade de acreditar. Suas crônicas fervem de adjetivos: “generoso,
benevolente, bondoso, honestidade e coragem inquebrantáveis, venerado, jamais
fez um inimigo e jamais perdeu um amigo, nobre, êmulo de Cristo”. É demais. O
homem era um monstro de virtude.
E, se quiserem saber, ele foi, além de tudo isto,
um homem afrontosamente belo.
Resumindo, era um desses homens — quantos haverá? —
que nos forçam a exclamar: “Assim é que os homens
deviam ser!”
De
sorte que, ao vermos agora Paul Broca inclinado sobre o cérebro deste Tan
inerte, fazendo-lhe uma pergunta que jamais havia sido respondida, talvez vocês
pensem: “Eis um homem que pode, se é que alguém o pode, dizer-nos o que
desejamos saber.”
A
TEORIA DE PAUL BROCA
"Broca
tem uma teoria. Eis como a apresenta diante de si mesmo: “Este homem já pôde
falar. De repente, perdeu a faculdade da linguagem... mas não a de compreender
a linguagem. Tampouco era um mudo. Por conseguinte, em alguma parte deste
cérebro deve haver um local apropriado para a articulação de palavras, o qual é
diferente do local para a audição e a lembrança de palavras, diferente do local
para a leitura e a escrita de palavras. Este local sofreu, em certo momento, um
ataque de epilepsia, foi destroçado por algum ferimento causado ao cérebro. Se
eu pudesse pôr o dedo em cima desse ferimento!”
Não
podemos acompanhar Broca através dos labirintos da dissecção, através das
explorações dos lobos, circunvoluções, sulcos e nervos dos cérebros, um
mecanismo tão intrincado que a máquina mais complicada até hoje inventada pelo
homem é tosca e infantil em comparação com êsse mecanismo. Não podemos
acompanhar suas cuidadosas observações científicas, seus raciocínios sutis.
Podemos, apenas, anunciar a sua memorável descoberta: que finalmente, na
terceira circunvolução frontal esquerda, num lugar a ser para sempre conhecido
por ‘circunvolução de Broca, ele topou com o
foco primitivo, o lugar de origem da lesão que fizera de Tan, posteriormente
conhecido como o Cérebro N.° 55 do Musée Dupuytren, um hóspede do Bicêtre
durante vinte e um anos.
E agora ele raciocina: “Se a função da linguagem pode ser
anulada por uma lesão numa pequena porção do cérebro, e apenas a uma, não é
isso o mesmo que dizer que aqui, neste local particular, e em nenhuma outra parte, está a sede
da linguagem? E se é a sede da linguagem, é também o centro do pensamento, pois
sem a linguagem é pouco possível pensar de fato. Portanto, certa porção do cérebro, na qual posso colocar o dedo, encerra o segredo de superioridade
do homem sobre todos os outros animais.
Não podemos subir mais do que
subimos aqui. Chegarmos ao próprio limiar da razão, ao lugar onde certos
processos de pensamento efetivamente acontecem, eis um momento alto na busca da
alma do homem. Estamos no verdadeiro cenário da fonte física de um processo puramente
mental. Estamos no lugar onde o material se
torna espiritual. Aqui se realiza a transformação do animal em homem. No seu
cérebro, e só no seu, acontece este milagre da linguagem.
Uma sensação do mundo
exterior topa num nervo, precipita-se ao longo de uma fibra nervosa, até o seu
fim num ponto de parada físico do cérebro, onde se transforma em uma percepção
consciente. Seguindo sempre uma fibra nervosa, esta percepção precipita-se para
o seu fim físico, onde é traduzido em sons — em linguagem. A linguagem é o único
dote humano de tal forma associado com
o pensamento, que é quase impossível pensar sem
ela. Podemos sentir sem a linguagem: não podemos, verdadeiramente, pensar sem ela. A distância imensurável entre o homem e o macaco,
segundo vemos ao investigar a evolução desta faculdade transcendente, ser
largamente explicada pela linguagem.
“Esse
homem, Tan, sofreu uma lesão cerebral progres-siva”, continua ele. “Prova-o a
lenta paralisia do corpo, insinuando-se no fim até a própria faringe. Isso torna
ainda mais difícil descobrir a lesão original.
Se
Tan houvesse morrido no dia em que perdeu a faculdade da linguagem, e se então
eu dispusesse do seu cérebro, poderia ter visto de um relance onde estava o
ferimento que lhe destruiu a linguagem. Mas, agora, a doença foi demasiado
longe... Olha aqui: nenhuma parte dos dois hemisférios do cérebro está em bom
estado. Tudo amoleceu nesta lenta e terrível dissolução do cérebro. Contudo,
uma vez que a doença era progressiva, deve ter começado em um determinado
lugar, espalhando-se a partir dali. Seria esse o lugar cuja lesão deixou
Tan sem fala. Uma vez que o seu primeiro sintoma foi a perda da linguagem, esta
perda deve ter sido resultado de seu primeiro ferimento. Ora, se eu puder achar
o lugar onde o amolecimento teve início...”
“Da teoria para a prática:
ei-lo agora em ação.
Não
fica simplesmente sentado ali, a contemplar
este cérebro morto como os metafísicos, a
parafusar especulações. Não; é um cirurgião, um homem de bisturi e serras, sondas e
todos esses complicados instrumentos de medir e pesar que inventara justamente
para tal fim.
Cortando
com um cuidado infinito a massa amolecida do cérebro, vê logo que aquilo com
que se vai ocupar não é um tumor nem um abscesso, pois aqui não há formação de
massa, mas uma efetiva perda de substância do tecido cerebral, que está cheio
de líquido. Parte da metade esquerda deste cérebro foi gradativa e
completamente destruída; ali, tudo está morbidamente mole.
“Torna-se
agora evidente”, diz ele, “que a primeira investida do amolecimento deve ter ocorrido no
local onde encontro a maior perda de substância. A doença espalhou- se, pois, a
partir desse ponto, por continuidade de tecido. O ponto onde se originou
deve, por consequência, ser procurado não entre os órgãos que agora estão moles
ou em processo de amolecimento, mas entre
aqueles que estão completamente destruídos, aqueles
"que perderam a maior parte de sua
substância.”
“Vocês podem ver agora como a inteligência de um
cientista e não a de um filósofo ou de um teólogo por mais, profundos que sejam, ataca este problema? Aqui, temos um homem determinado a acreditar apenas
naquilo que vê, mas determinado, também, a ver tudo que há para ver. de ocorre este milagre; a um local onde toda a filosofia e toda
a teologia de dez mil anos nunca nos levaram.
Veem vocês agora como, pelo estudo do cérebro, este órgão
durante tanto tempo desprezado, estamos começando a lançar um pouco de luz
sobre a questão da mente. À medida que avançarmos, veremos essa luz crescer
cada vez mais, até finalmente, onde há tão pouco tempo tudo eram trevas,
alcançarmos, pelo menos, uma alegre alvorada.”
UM
CASO, É SUFICIENTE PARA CONSOLIDAR UMA TEORIA?
"Mas
uma andorinha só não faz verão... e um caso jamais constituiu prova. O longo
braço da coincidência nunca é tão longo como quando se estende para confundir
algum jovem cientista, por mais brilhante que ele seja, em um novo campo de
pesquisa. O Caso de Tan... sim, interessante, muito interessante, disseram os médicos.
Alguns doutores tomaram conhecimento dele, acharam que indicava
possibilidade... Mas o mundo médico é, sabidamente, difícil de convencer. Eles
chamam a isto ser conservador. Queriam mais provas.
O
próprio Broca era o pior.
“Precisamos
de outros casos”, insistia. “Precisamos verificar se, com a perda da linguagem,
sempre
há lesão nesse mesmo lugar.”
Mas
Estes casos de afemia (a abolição da linguagem articulada com preservação da
atividade de articulação e da faculdade geral da linguagem), como Broca
designava o mal de Tan, não são assim tão fáceis de encontrar: são, na
realidade, raríssimos. Contudo, a informação de Broca pusera os médicos
alertas, de sorte que, de vez em quando... Houve o caso de Bart Mathews.
Certa
manhã, em Londres, num cruzamento de ruas, Bart escorregou e caiu; e, ao cair,
uma vareta do guarda-chuva penetrou-lhe na órbita de um olho. Bart foi
transportado para um hospital.
Bom, a
coisa não é tão feia assim, disseram os médicos depois dos pensos. Não é nada
feia, muito pelo contrário. Moço, você não perderá a vista. Alguns dias na cama
e provavelmente enxergará tão bem como antes. Que acha disso?
Bart
sorriu com as partes do rosto que haviam ficado fora das ataduras e se dispôs a
dizer que isso era uma maravilha, quando verificou que não podia, que
absolu-tamente não podia pronunciar uma única palavra!
Era
espantoso! Bart estava confuso porque compreendia todas as palavras que os
médicos diziam. Os médicos, porém, estavam mais confusos do que todos.
Trouxeram às pressas outros médicos, tentaram tudo o que lhes ocorreu,
finalmente resolveram que talvez uma boa noite de repouso . . .
Ora,
quando os médicos não podem lembrar-se de mais nada que uma boa noite de
repouso... Naturalmente, Bart continuou tentando falar: com cada enfermeira que
metia a cabeça no quarto, com os parentes quando apareceram para lhe dizer que
após uma boa noite de repouso... e consigo mesmo, quando ficava só. Mas era
inútil. Não pôde emitir uma única palavra.
A boa
noite de repouso não ajudou. Talvez outra, talvez outras ajudassem. Qual nada!
Elas não trouxeram aos seus lábios nem mesmo um monossílabo. Os médicos, com muito
brilho, pst.ahplpneram meios para
determinar a extensão do mal, embora não se
mostrassem tão brilhantes na descoberta de meios
de cura. Passaram um jornal aBãríníé^órriu e
sacudiu a cabeça. Podia lê-lo como a Tia Gansa. Mas daí a pronunciar as
palavras!... Deram-lhe lápis e papel. Rápido como um relâmpago, escreveu:
“Posso dizer tudo o que desejo.. . no
papel.”
Bart
Mathews, pobre homem, não teve jeito. Nunca mais voltou a falar. Os médicos
comunicaram o seu caso às associações médicas, e ele entrou para os arquivos
como mais uma prova da teoria da afasia parcial, ou afemia, devida à lesão na
zona de Broca.
Alertados
por estas comunicações, médicas, cada vez em maior número, começaram a
investigar casos de afasia: afasias causadas por acidentes como o de Bart,
ferimentos na cabeça, tumores, abscessos, amolecimento do cérebro. Em breve
tinham dúzias de casos; em breve os tinham às dezenas; em breve não podia mais
haver dúvida quanto a isto: uma lesão naquele lugar especial, a terceira
circunvolução frontal esquerda, invariavelmente tinha como resultado a
incapacidade de falar. A teoria de Broca estava provada!
Ótimo!
Mas para um homem como Broca, isso era apenas o começo. Havia muito mais a
aprender sobre essa faculdade da linguagem, tão complicada como o próprio
pensamento.
“A linguagem não é apenas uma coisa”, raciocinava ele consigo mesmo. “Nem é simplesmente a
capacidade de pro- nunciar palavras. Uma faculdade geral da língua preside a todos "os
nossos modos de expressão do pensamento. A linguagem é a faculdade de
estabelecer uma relação constante entre uma idéia e um símbolo, quer êsse sinal
seja um som, um gesto, uma figura ou qualquer outra espécie de marca. A
linguagem toma a forma de palavras faladas, palavras impressas, palavras acenadas, e
mesmo, com os cegos de palavras tateadas.
"Sou
levado a afirmar que cada uma destas formas de linguagem tem sua zona
independente e distinta, no cérebro. Acredito que haja um centro para ver as palavras, um centro para ouvir as palavras, um centro para acenar as palavras, um centro para escrever as palavra, exatamente como há um centro
para pronunciar as palavras. Assim, o que devo fazer em seguida, é tentar
localizar todas estas outras zonas da linguagem.”
Certo
dia, aconteceu uma bela coisa. Morreu uma
mulher em Paris, uma mulher inteligente e
bem-educada, que, conser-vando até o fim a capacidade de falar, perdera, havia
muito, a capacidade de ler.
“É
agora!” exclamou o jovem Broca. “A agora a oportu-nidade para localizar esta minha famosa zona da
linguagem visual!”
Abancado
no laboratório, com o cérebro desta mulher à sua frente, assim
raciocinava:
“Devo
encontrar um tumor. Não no local onde teve início a lesão de Tan... não. Perto
dele? Acho que sim. Estas diferentes formas de linguagem estão estreitamente
relacionadas. Agem harmonicamente. Por consequência, embora cada uma deva ter a
sua sede separada e independente no cérebro, visto que cada uma, em virtude de
uma lesão a um dado local do cérebro, pode ser removida sem prejudicar
nenhuma das outras — como no caso de Tan, como no caso desta mulher — elas devem estar ligadas.
Espero, portanto, encontrar a sede da linguagem visual próximo da sede da linguagem
vocal.”
E no
cérebro desta mulher morta, procedendo cautelo-samente como no caso de Tan,
Broca, conforme previra tão brilhantemente, alcançou afinal o centro da
linguagem visual— e, de fato, próximo do centro da linguagem vocal. É esta a
sua segunda contribuição para o descobrimento das zonas da linguagem.
“Mas
esta faculdade de falar”, provavelmente vocês esta-rão dizendo com seus botões,
“é mais complicada do que parece a princípio. Você explicou multo bem onde ela funciona... na zona de Broca e "zonas
associadas. Mas como funciona?
'"Sim,
precisamos examinar isso. Qual é o mecanismo exato da linguagem? Que é,
precisamente, o que se verifica nos recessos dêsse órgão inacessível e silencioso, o
cérebro, quando falamos?
Raciocinemos.
Uma
criança nasce. Nasce sem fala. Por muito tempo depois de nascer, continua sem fala como um macaco, e
continuaria para sempre sem fala se não a ensinassem a falar. Embora todos os seus antepassados hajam falado durante
muitas centenas de milhares de anos, ela não herdou uma só palavra, nem sequer
um papai.
A linguagem não é fácil, como o é esta outra característica humana, andar de
pé, capacidade que, entregue aos nossos próprios recursos, acabaríamos
adquirindo. Não; é uma coisa que nos deve ser ensinada.
Nascemos
sem a linguagem: nascemos ignorantes. Se nunca adquirimos alguma forma de
linguagem, continua-remos ignorantes durante toda a vida.
Mas a
criança, como qualquer outro animal, faz ruídos: ruídos expressando os seus
sentimentos. Chora, “ri”, geme. A princípio estes ruídos, como os de muitos
animais inferiores, são, todos eles, vogais. Vêm depois novos sons, em certa
ordem, sempre a mesma ordem para todas as crianças: primeiro grunhidos ainda,
depois o verdadeiro riso, depois a imitação sem sentido, de sons, até que, lá
pelo duodécimo mês, começa a articular algumas palavras simples, primeiro
nomes, depois verbos, adjetivos, etc. A partir de então, marcha, incessantemente,
da ignorância para a inteligência, em proporção com a aquisição de palavras.
Agora,
quanto ao processo neurofisiológico.
Ao
nascer a criança, o córtex cerebral (a
capa cinzenta do cérebro) se acha em
estado plástico. Suas células, pela maior
parte, encontram-se na fase de não-funcionamento, estado potencial em que são
chamadas de neuroblastos. Sim, dir-se-iam sementes que germinarão quando o calor do sol
penetrar; ou um filme que registrará uma imagem quando, a luz o ferir. Essa luz
é, ordinariamente, a palavra ouvida.
As
primeiras palavras que a criança ouve são recebidas na zona acústica do seu
cérebro. Lá, elas causam uma fraca impressão e devem ser ouvidas repetidamente
para que os neuroblastos tomem nota efetiva destes sons. Um trilho neurônico deve ser aberto
pela repetição de palavras. Quando os sons forem registrados, o neuroblasto, de
potencial que era, torna-se ativo. Um neuroblasto assim transformado, é chamado
neurônio. Finalmente, chegamos a ter uma biblioteca inteira de neurônios.
Mas
a criança ainda não sabe falar. Até aqui, as palavras estão registradas apenas
na zona acústica. São apenas palavras ouvidas — e, não, compreendidas, lembradas; não, palavras faladas. Elas
ainda não alcançaram a zona de Broca.
Mas
as células e fibras nervosas do córtex cerebral são contínuas. O impulso dos
neurônios ativos na zona acústica viaja para a zona de Broca, a zona comum de
execução da linguagem. Gradativamente, esta zona acústica se liga por meio de
neurônios com a zona auditopsíquica: e começa o processo de lembrança das palavras. A
mesma coisa ocorre na zona visual, a zona onde se ligam a palavra e o objeto.
Finalmente, os neurônios ligam as zonas auditivas e visual com uma zona de
associação: e temos, em
plena madureza, a faculdade da linguagem. As
palavras agora são
ouvidas, ligadas com um objeto visível. Lembradas,
compreendidas e pronunciadas! Tudo por
causa da conversão dos neuroblastos em neurônios.
É
isso, portanto, o que acontece no cérebro do
uma criança que está aprendendo a falar.
Embora não possamos observar o andamento deste processo no cérebro vivo, sabemos, por experimentações
de laboratório e da prática clínica, que
isto é o que deve acontecer.
Os
neuroblastos que podem fazer isso, existem apenas no cérebro do homem.
Esta
explicação do mecanismo da linguagem é,
admitimos, bioquímica, pois que a vida e as funções de
um neurônio
não passam de processos químicos Quando dizemos, com Berry. que as idéias são simplesmente palavras armazenadas em neurônios corticais
em consequência de estímulos anteriores acumulados de de som ouu de visão,
estamos dando uma explicação do
pensamento . E muita gente protestará
contra qualquer espécie de explicações
químicas
de suas almas imortais.
Dirão:
“Ora, essa!
Onde já se ouviu falar em mistura de células cerebrais e de ideias? Não pode ser... é como azeite e água. O que vocô esta
dizendo, em palavras simples, é_ que o físico se torna mental E isso, em plavras simples, é
bobagem!”
'
Convém
lembrarmos que foram as muitas explicações anticientíficas do espírito quo por
tanto tempo retardaram a compreensão, por parte do homem, de sua própria
natureza, causando a confusão e o atraso
de todas as ciências mentais. A omissão do uma base anatômica e fisiológica no estudo da linguagem, segundo o
eminente Dr. Klnnlcr Wilson, foi o principal responsável pela longa confusão em torno dos
nossos processos mentais.
Hoje,
nenhum cientista rejeita esta explicação físico-quí- mica da linguagem. Nenhuma
outra explicarão, execeto esta de um número incalculável de neurônios que
armazenam imagens auditivas e verbais, esboça sequer um esclare-cimento do fato da linguagem;
e, se explica a linguagem, explica também, grandemente, o espirito. E enquanto
não dispusemos desta
explicação científica do espírito não pode haver uma verdadeira ciência da
psicologia e da Psiquiatria. Ouçamos, pois, mais alguma coisa sobre esta faculdade da
linguagem, que lança tanta luz na natureza humana.
Ela
é ainda mais misteriosa do que nos parecera,
e foi em virtude destas perguntas diretas e
inquisitivas de Broca que o mistério finalmente se dissipou.
A segunda pergunta que fez a
si próprio foi esta:
“Há muitas espécies de afasia”, disse
ele. “Há a afasia motora, a incapacidade de pronunciar as palavras, como aconteceu com
Tan. Há a afasia visual: não compreender a palavra impressa ou escrita, como aquela
senhora educada que não podia ler. E há a afasia auditiva, que significa não
compreender a palavra falada dos outros.
“Suponhamos,
agora, que se hajam investigado todos os casos de cada espécie de perda da
linguagem nos quais possamos pôr a mão? Poderemos, assim, localizar todos os
centros da linguagem no cérebro e, finalmente, descobrir muita coisa sobre os
processos do pensamento.”
Uma
vez no rasto, os médicos e cirurgiões trabalharam como verdadeiros cães de
caça. Começaram descobrindo casos que conduziram ao mais estranho, ao mais
assombroso ...
Houve, por exemplo, o caso de
Cecil Handover.
Handover
era um professor de línguas numa escola inglêsa. Falava corretamente francês,
latim, grego, inglês, e Oxford: uma língua de sua exclusiva especialidade.
Um
dia, Handover sofreu um acidente em que recebeu graves ferimentos na cabeça.
Quando estava bastante reposto para fazer alguma leitura leve — verificou que
não podia ler! Nem uma única palavra de sua língua materna, o inglês, lhe era
inteligível. Mas não foi esta a coisa realmente estranha do seu caso. Este
fenômeno, os médicos já o haviam observado antes. O estranho foi que, certo
dia, quando lhe aconteceu olhar para um exemplar da Poética, de Aristóteles, no
original grego, verificou que podia lê-la como se fosse uma cartilha!
Experimentam-no então no latim. Sim.. . sim, podia também ler Horácio no
original. Mas ele franze as sobrancelhas, gagueja, sacode a cabeça. Não, não o
pode ler tão bem como o grego. Estranho... porque antes do acidente compreendia
as duas línguas mortas igualmente bem.
A
coisa é ainda mais misteriosa. Trouxeram-lhe um exemplar de Le Cid, que ele
anteriormente conhecia quase de cor. O texto francês, agora, lhe é praticamente
ininteligível. Articula algumas palavras, algumas frases, mas vacilando. Quanto
ao inglês, sua língua de infância, continua até o fim totalmente incapaz de
decifrar. Para ele, era como... grego, não: como chinês.
As coisas se encaminham,
assim, para um ponto ainda mais delicado do que aquele onde os deixara o caso
de Tan e da senhora que não podia ler. E, tornava-se agora evidente, não só
havia centros independentes e distintos para a articulação da linguagem, para
a visão
da linguagem e para sua audição, como também centros independentes para cada língua dife-rente!
Parece até que o cérebro, à medida que se torna mais conhecido, torna-se mais
misterioso.
Havia,
apenas, uma conclusão a tirar destes fatos: que o cérebro é uma biblioteca onde
há prateleiras separadas para cada língua. Com cada nova língua que adquirimos,
acrescentamos uma nova prateleira a nossas zonas de linguagem, e estas, por sua
vez, estão divididas em compartimentos para ver, ouvir e pronunciar estas
línguas.
Mecanismo
complicadíssimo, Este nosso cérebro.
Casos
sucederam-se a casos, até finalmente ficar provado a fartar que a faculdade
geral da linguagem reside no cérebro; que ela tem muitas subdivisões, cada uma com seu
centro independente; e que uma lesão num destes centros priva-nos de um método de comunicação, mas
não de todos. Como vocês veem e conforme Broca calculava, o espírito do homem
vai sendo gradualmente descoberto por meio da faculdade da linguagem.
Broca,
porém, ainda não está satisfeito. Insiste em que se está apenas no começo.
Continua com sua insaciável investigação.
Sabem
vocês que teoria das faculdades mentais era aceita, com toda a seriedade
científica, nos dias de Broca — e por algumas pessoas que vivem ainda hoje? Nem mesmo o
imaginam?
A
teoria da frenologia! Esta falsíssima ciência, que hoje está para a psicologia
na mesma relação que a alquimia para a química, ou a astrologia para
astronomia, era sã e boa ciência no tempo de Broca. Os frenologistas
sustentavam (e foram o grupo maior, mais popular e cabeçudo de toda a história
da psicologia) que as bossas do crânio indicavam a localização de certas
faculdades. Você está doido e quer brigar? Pois debaixo daquela bossa (no seu
caso particular, grande) por detrás do seu ouvido, processa-se uma intensa atividade;
o seu senso de combatividade desperta. Você vê uma fêmea atraente e fica
grandemente impressionado? Pois debaixo da Bossa N.° 1, logo acima de sua nuca
(experimente-a. . . deve estar quente) a atividade é terrível. Você é um bichão
na matemática? Procure entre o ôlho e o ouvido, a Bossa N.° 28, que, no seu
crânio, deve ser prodigiosa. Você aprova o que vê em cada espelho por que
passa, e o que acha de si própria, vê nos olhos de todos os homens e mulheres
com que topa? A Bossa N.° 10, atrás da cabeça, lhe diz por quê: a sua vaidade é
exagerada.
Tudo
isto teve início nos primeiros anos do século xix; çomeçou-o um médico alemão
de cabedais científicos não insignificantes, Gall. que foi o primeiro a
insistir que a matéria cinzenta de nossos cérebros é a parte realmente valiosa,
mas que depois se enredou todo e insistiu: “Onde quer que haja grande
atividade, no cérebro, há um acúmulo de matéria cinzenta. Isto produz
naturalmente protu- berâncias no crânio.
Há,
assim, uma bossa para cada faculdade, e tateando as bossas, podemos ler o
caráter e os talentos.”
Para
muitos, isto era a Bíblia no tempo de Broca. Broca, porém, não aceitava a
Bíblia de ninguém: nem a dos cientistas nem a dos antigos hebreus. A toda esta
algaravia frenológica ele se limitou a dizer polidamente: “Sim?” Lá no seu
laboratório, porém: “Acho que tudo é completamente diferente do que eles dizem.
As bossas do crânio nada mais indicam do que irregularidades na espessura do
osso. Toda essa especulação em torno de bossas que indicam faculdades mentais é
pura fantasia, e disto é que estamos procurando fugir. Tudo o que conhecemos de fato, tudo o que
descobrimos por métodos puramente científicos (que é apenas o que importa) é
que há vários centros de linguagem. Mas, se descobrimos tanto, por que não
prosseguir? Não haverá, porventura, centros para outras faculdades? E será
acaso impossível localizá-los? Tateando bossas 110 crânio, não, porque o córtex cerebral não se comporta dêsse
modo; mas, sim, acompanhando o rasto de anormalidades mentais até suas fontes,
no cérebro. Há, sabemo-lo, zonas definidas e circunscritas do cérebro onde as
fibras nervosas dos vários sentidos se encontram: um centro da audição, da
visão, do tato, do gôsto, do olfato e agora da linguagem.
“Falar:
eis uma das faculdades superiores. Portanto, o fato de encontrarmos um centro
da linguagem significa, provavelmente, que as outras faculdades superiores têm,
semelhantemente, os seus centros. Não nos é lícito, por conseguinte, alimentar
a esperança de localizar os centros da memória, conhecimento, julgamento, até
alcançarmos os supremos atributos do homem: o senso moral e a razão?
“Penso
que podemos; mas não eu, não nos meus dias. Se todas as faculdades cerebrais
fossem tão distintas, tão nitidamente definidas como esta da linguagem, não
haveria dificuldade em localizá-las no cérebro. Infelizmente, não é assim.”
Mas,
claro, isto não o impediu de experimentar — nem mesmo por um minuto. Começou
imediatamente a tentar a localização destas faculdades superiores como se fosse
viver, pelo menos, vários centenas de anos.
Mesmo
hoje, não chegamos ao fim do caminho em que Broca cravou o seu marco com o letreiro:
“Caminho para o Espírito!” Mas ja andamos muito. Descobrimos muitas coisas sobre estas
nossas faculdades superiores e sua dependência do cérebro. E em grande parte as
descobrimos seguindo essa primeira e larga trilha que ele marcou: a
linguagem."
NOVAS
INFORMAÇÕES
Num
hospital de Paris, sôbre uma mesa de operações, está uma mulher de nome Annette
Berthier.
A Sra.
Berthier é casada, mãe de três filhos. Ültimamente, têm-lhe acontecido coisas
estranhas. Ela, que sempre foi uma espôsa tão boa, uma mãe tão amorável, ficou geniosa e mesmo mal-encarada: tem freqüentes olhares de esguelha e, uma
vez, brandiu ameaçadoramente uma faca.
Frequentemente
fala com incoerência, tateia as palavras, diz frases sem sentido. E se esquece
de tantas coisas: não só de acontecimentos recentes como também dos nomes das
coisas mais comuns e de seus filhos.
E
finalmente, convencido de que ela está louca, temendo que ela lhe seja levada e
internada em algum terrível sanatório, seu marido leva-a ao médico da família
— e ei-la aqui, algumas semanas mais tarde, sôbre a mesa de operações de um
grande cirurgião, o famoso Dr. Vincent, de Paris, discípulo do nosso grande
Cushing.
Uma
plataforma estende-se sôbre tôda a mesa de operação, algumas polegadas acima
do corpo da Sra. Berthier. É para os instrumentos cirúrgicos. Cobre quase tôda
a extensão do corpo. Apenas a cabeça está exposta.
A
cabeça foi raspada a navalha. Está firmemente apoiada numa almofada de areia,
de sorte que não cederá à pressão mais pesada do trépano perfurando
o osso. Na abóbada craniana, de um branco sem brilho, o Dr. Vincent traçou um
retângulo.
O Dr.
Vincent, de aspecto estranho como um homem de Marte, todo de branco — barrete
branco, uma máscara de gaze branca que lhe deixa de fora apenas os grandes óculos,
uma lâmpada frontal ajustada em tôrno da testa como a lanterna de um mineiro,
punhos de malha e um pouco de gaze introduzidos frouxamente em tôrno dos
pulsos, por baixo das luvas de borracha, para impedir que seja cortada a
circulação do sangue para as mãos — o Dr. Vincent está pronto.
As mãos
enluvadas do anestesista descem sôbre a cabeça raspada. A Sra. Berthier
agarra os varões metálicos da plataforma. “Não, doutor!...”
A
agulha do anestesista penetra na carne, o êmbolo desce
lentamente. Vinte vezes à volta daquele retângulo a agulha desce, espeta, verte
sua droga que extingue a dor.
Agora, empilham-se
e cingem-se
compressas em tôrno da cabeça depilada. Cabos ligam várias partes do corpo a instrumentos que registram
a respiração, a pressão sanguínea, etc.
Estão
prontos para abrir uma janela no cérebro. O couro é cortado, puxado para trás. O
Dr. Vincent apanha o trépano elétrico que um assistente
lhe apresenta. Segurando-o fortemente contra o crânio exposto, suas mãos têm o
movimento vibratório das mãos de um operário que bate um rebite de aço.
Um
assistente injeta uma solução fisiológica morna, sem cessar, nas incisões. E
assim, seis vezes — seis buracos em redor do retângulo.
Deslizando
a serra de aço de buraco a buraco, ele serra completamente o osso até que o
retângulo fica quase livre do resto do crânio, prêso apenas por uma pequena
dobradiça de músculo e pele para alimentar a tampa óssea durante a operação.
A janela está aberta.
Agora
vem a parte cansativa. Os vasos sangüíneos, agrupados na superfície do
cérebro, devem ser, um após outro, cuidadosamente separados, delicadamente suspensos
e atados de um lado. Enrolados em gaze, eles formam uma trouxa dentro do
crânio.
E agora
ele a vê; a coisa que sabia estar ali, que devia estar ali, naquele lugar
exato. Ali, na terceira circunvolução frontal
esquerda está ela, um rebento mórbido, expandindo-se, fazendo pressão, dentro
dos limites de osso do crânio, sôbre o tecido elástico do cérebro,
desorganizando de todo o seu funcionamento incalcu-lavelmente sutil.
Agora
os assistentes se agitam. Seus diferentes instrumentos penetram a branda
substância do cérebro, erguendo, cortando, cauterizando, estancando o sangue; suas mãos fixam pequeninas pinças de arame
de prata, manejam bisturis, tesouras, cautérios elétricos. Um depois do outro, ou vários ao mesmo tempo, eles
manipulam o tecido do cérebro.
Perdeu-se
muito sangue: um litro e três quartos. Uma doadora de
sangue senta-se ao lado da mesa de operação. O sangue passa dela para a
paciente: meio litro, três quartos de litro, um litro. O resto é completado
com injeções de sôro.
Durante
todo êste espaço de tempo, a Sra. Berthier está perfeitamente consciente. Seu
cérebro continua pensando. Que pensará ele do que lhe está acontecendo?.
Pronto.
Resta apenas devolver à sua posição a janela de osso prêsa pela dobradiça de músculos, a
coberta de couro, e costurar tudo.
Começaram a operação, às nove horas da manhã. São agora
cinco horas da tarde — oito horas. Annette
Berthier conservou a
consciência durante todos os momentos dêsse período, e sob as mãos do cirurgião
se operou uma mudança na qualidade dessa consciência. Ela nunca mais lançará os
olhares esguelhados da mentalidade desequilibrada, nunca mais se esquecerá das
palavras nem as empregará erradamente, nunca mais se enraivecerá. A mudança é
quase instantânea. Logo que o Dr. Vincent tira a máscara, os olhos dela se
fixam no seu rosto. Ele se aproxima e pára ao lado dela. A Sra. Berthier
toma-lhe a mão.
—
Doutor — murmura. — Bom doutor, obrigada. Obrigada pelos
meus pequenos.
Naquelas oito horas, ela retornou do que parecia uma psicose
para a sanidade mental completa.
E durante êsse tempo, o Dr. Vincent, sem alimentação, sem
descanso, sem parar de operar, envelheceu, transitoriamente, dez anos. Seu
rosto está macilento; seus olhos, mortiços; sua bôca, frouxa. Sua barba cresceu
um pouco. Seus assistentes, todos eles foram substituídos, mas ele nem mesmo
fêz uma pausa.
Sua recompensa é aquela expressão com que o olhar da Sra.
Berthier o segue até a porta.
Penetrou-se num cérebro para corrigir algo que estava mal
no espírito. A isto nos levaram finalmente as pesquisas de Broca. Com isto,
também, ele sonhou.
Uma operação assim era impossível em seu tempo: antes de
Morton e Long com seus anestésicos, antes de Lister com seus antissépticos,
antes do próprio Broca com suas provas de que as lesões cerebrais
"gToaTizêm anormalidades mentais. Hoje, operações no
cérebro, como essa. e outras muito mais complicadas e perigosas, são lugar-comum.
Entretanto, mesmo em 1874 — vinte e oito anos depois de
Morton, uma década depois de Lister — um dos maiores cirurgiões de seu tempo, Sir John Erickson, disse: “As partes do arcabouço humano que continuarão
sempre sagradas são o abdômen, o tórax e o cérebro, os quais se conservarão
sempre cerrados à intromissão do cirurgião sensato e humano.”
No tempo de Broca (e às vezes hoje), eram considerados
dementes, homens que não eram mais loucos do que vocês ou do que eu. E morriam,
sempre dementes segundo os médicos, porque a indiscutível relação entre o
cérebro e o espírito ainda não fôra estabelecida. Mesmo hoje, quando a ciência
médica já não discute esta conexão, o diagnóstico às vezes erra, e um
hoiners} pu uma mulher com uma lesão qualquer no cérebro são declarados dementes incuráveis quando
uma operação, como a que acabamos de assistir, lhes teria restituído a
sanidade mental completa.
Neste
ponto, talvez não seja mal lembrado dar uma idéia de como é de fato este nosso
tão falado cérebro.
Vocês
têm uma idéia geral. Já viram miolos de vitela. Sôbre a massa de substância
branca que constitui a parte maior do cérebro, fica uma branda camada cinzenta
(o córtex cerebral) com uma espessura de um duodécimo a
um oitavo de polegada. Nesta matéria cinzenta está implantado um número
incalculável de minúsculas células de todos os tamanhos e feitios,
intrincadamente ligadas por fibras nervosas. Ela está dobrada e redobrada sôbre
si mesma, tal como se pode dobrar veludo cinzento, sendo as dobras principais
os lobos, e as dobras menores as circunvoluções.
Exatamente
aqui, topamos com outro exemplo do alcance das pesquisas de Broca. No seu
tempo, os cientistas mais avançados, que escarneciam dos frenologistas,
consideravam, não obstante, estas dobras do cérebro, sem significação. Elas
eram pregas puramente acidentais em que o cérebro caíra — como as pregas do
vestido de uma dama. O fato de raramente mudarem de forma e serem análogas em
todos os cérebros humanos devia ter advertido os cientistas de que nada havia
nelas de acidental.
Broca
foi o primeiro a anunciar a natureza destas dobras. Disse que não tinha a
menor importância a distância que uma lesão podia apresentar de certo ponto
fixo do cérebro (os pesquisadores de seu tempo estavam sempre
a medir minuciosamente quantos centímetros esta ou aquela lesão distava da cisura de Rolando ou da cisura de Sylvius ou da
grande cisura longitudinal); o que importava era a dobra onde a lesão estava
localizada; e isto porque, sustentava ele, cada circunvolução era a sede de certa faculdade. As cisuras e as
linhas em torno das quais eles faziam tanto barulho eram, simplesmente, limites
arbitrários de seus próprios desenhos, declarava Broca. São as dobras
que têm importância.
O
encéfalo, composto de uma parte anterior, principal { (o cérebro), e de
uma parte posterior, pequena (o cerebelo)} está alojado no crânio, mas
as suas ramificações, o sistema nervoso, estendem-se a todas as partes do
corpo. Este sistema nervoso é o nosso único meio de contato com o mundo
exterior e com o mundo interior de nossos corpos.
Mas
êste sistema nervoso central faz muito mais do que nos engatar com êstes dois
mundos. Faz o que, estou certa, concordarão em considerar a coisa mais
importante que ocorre em todo o universo: permite-lhe saber que você é você,
que está vivo, e que está aqui. Liga todas as suas diferentes partes e faz de
você uma unidade.
Você é
construído de bilhões de células, sendo cada uma delas uma entidade completa de
per si, tal como uma ameba. Cada célula vive a sua própria vida: alimenta-se,
respira, e executa as suas múltiplas atividades individualmente.
Entretanto,
todas elas, desde os dias da esponja, renunciaram aos seus direitos
individuais pelo bem do conjunto. Todos êstes bilhões de vidas distintas que
vivem em você (as quais podem efetivamente continuar a viver se forem separadas
da sua pessoa) são integrados pelo sistema nervoso. No cérebro, onde a
integração toca o seu vértice, está sediada a mente, que nos faz conhecer esta
unidade, de sorte que nós nos sentimos uma entidade, um Eu.
Mas
prossigamos com a exploração dêste nosso espírito tão altamente prezado — o
qual, cada vez mais, à medida que avançamos, mostra ser uma função do cérebro.
Seguindo
Broca, como Pizarro, Balboa e Cortez seguiram Colombo, outros exploradores do
espírito puseram-se em marcha, médicos, cirurgiões e pesquisadores de
laboratório. Descobriram e cartografaram numerosas zonas do cérebro, não
relacionadas com “bossas” do crânio como havia anunciado aquela casta de
cientistas dantes respeitados e honrados, os frenologistas; mas zonas nas circunvoluções da matéria cinzenta, cada uma das quais tinha uma função
especial.
Houve
tantos “pela-primeira-vez” nesta comovente aventurando descobrimento do
espírito!
Foi péla primeira vez, em 1870, não
mais, que se aplicou o estimuio elétrico, a certas'partes do cérebro de um cão, verificando-se que aplicado
a uma zona, êste estímulo elétrico mexia com uma perna; aplicado a outra, com
um olho; a outra, com uma orelha — com a perna, o olho, a orelha esquerdos ou
direitos, conforme o escolhesse o experimentador.
Depois, foi pela primeira vez que se empregou o método de extirpação, descobrindo-se que a remoção de uma dada parte, do cérebro
destruía um dado sênlãaò ou função.
E pela
primeira vez os cérebros de animais. vivos (cães, novamente) foram estudados
pelas hábeis experiências de Pavlov, e o ‘^reflexo condicionado” foi lançado
como um novo método para o estudo da mecânica do cérebro.
Mas o
método mais fecundo de todos continuou a
ser o processo adotado por Broca, o de estabelecer a correlação éntre distúrbios mentais e lesões físicas, e, particularmente,
distúrbios da linguagem. A partir daquele ma em que ele disse ‘rSe eu puder descobrir de onde vem a palavra...” o
cérebro tem revelado os seus segredos de um milhão de anos, não aos filósofos e aos metafísicos,
nem mesmo aos psicólogos em primeiro lugar, mas aos médicos e cirurgiões. E,
com êstes novos métodos anatômicos e fisiológicos, que
descobriram eles acêrca do espírito? Consideremos mais alguns casos de
distúrbios da linguagem.
Alguns anos atrás, um homem foi ter às mãos de um médico
do Roosevelt Hospital, o eminente Dr. W.
Hanna Thomson.
Um caso estranho, o de Ogilvey (chamá-lo-emos assim). Não podia dizer uma só
palavra, o que não era por si só tão estranho: Thomson tivera muitos casos semelhantes.
Mas, desta vez, ele tinha uma teoria, e, o que é melhor, pensava ter meio de
cura.
O Dr. Thomson receitou iodureto de potássio a Ogilvey, disse-lhe como tomá-lo,
pedindo-lhe que
voltasse após duas semanas.
Daí a duas semanas Ogilvey voltou — radiante.
—
Olhe — disse ele, gaguejou e ficou a esforçar-se por prosseguir. — Posso.. . falar... trabalhar! — pôde
finalmente articular. E ficou mais radiante.
—
Ótimo! — disse Thomson, exultando também. — É justamente
o que eu esperava. Agora o senhor continua tomando êsse iodureto de potássio,
tantos grãos, tantas vê- zes por dia, e volte de novo daqui a... a uma semana.
Dirá então mais algumas palavras.. . vai ver.
Daí a uma semana Ogilvey estava de volta — com mais
palavras.
—
Posso falar — disse mais radiante do que nunca. — Posso
dizer... —Aqui, começou a gaguejar. — Sinto... que o senhor está me ajudando...
estamos fazendo...—Mas quando tentou prosseguir, as palavras não vieram.
O Dr. Thomson, entretanto, continuava indisfarçàvelmente
satisfeito. Bateu nas costas de Ogilvey. Continue com o iodureto de potássio.
Mais palavras virão. Volte daqui a uma semana. E, assim, as coisas continuaram.
Cada semana, Ogilvey voltava com mais palavras.
Mas, que tinha o iodureto de potássio com isso?... O Dr.
Thomson diagnosticara uma goma sifilítica, uma espécie de tumor nas zonas da
linguagem de Ogilvey: a terceira circunvolução frontal esquerda. O iodureto de
potássio, como é de sua natureza, era atraído por êste tumor, causando a sua
absorção gradual e libertando, assim, os mecanismos da linguagem.
Estão notando como, quanto mais estudamos esta faculdade
da linguagem, tanto mais claramente ela mostra a dependência do espírito ao
cérebro e a maneira como o espírito funciona?
Mas, se um caso como êste de Ogilvey nos parece surpreendente,
que dizermos das descobertas posteriores com relação à natureza do espírito,
feitas pelos médicos que, seguindo as pegadas
de Broca, investigaram casos ainda mais curiosos de perda da linguagem?
Era
curioso. Sim, pensando bem, era extraordinário. Todos êstes casos de
distúrbios da linguagem ocorriam com pessoas que eram feridas, ou que
apresentavam uma doença no lobo frontal esquerdo. Sim, isto era uma
coisa estranha. Efetivamente, raciocinavam os doutores, devem ferir-se tantas
pessoas do lado direito da cabeça quantas se ferem do lado esquerdo. Portanto,
por quê?.. . Por que não havia um número igual de casos de pessoas que ficassem
mudas ou surdas quanto à linguagem falada, ou cegas quanto à linguagem escrita,
em conseqüência de lesões no lado direito da cabeça?
Temos
dois olhos; ambos funcionam de modo semelhante. Um ôlho pode, em caso de
emergência, fazer o trabalho dos dois. Temos dois ouvidos; ambos trabalham de
modo semelhante. Duas narinas; elas trabalham do mesmo modo. Além disso, as
sedes anatômicas de todos os sentidos e as dos movimentos musculares estão
localizadas em ambos os hemisférios do cérebro. Assim, pois, êstes dois
hemisférios idênticos, que funcionam semelhantemente para os sentidos, devem
também funcionar semelhantemente pára a linguagem. Sendo assim...
O que
tornava tôda a questão realmente singular era
que, por vezes — muito raras, justamente as vezes necessárias para dar um tom
sobrenatural a todo o assunto — lima lesão no hemisféríò direito resultava em perda da fala. De sorte que isso provava, está-se vendo, que os he- fíTTsférios direito e esquerdo, como os olhos
direito e esquerdo, eram idênticos em função assim como em anatomia e fisiologia, desde que pudessem funcionar igualmente.
Então,
à medida que se observavam novos casos, alguns médicos ousados começaram a
fazer uma pergunta perfeitamente fútil.
Numa
revista médica, ou numa conferência médica, êstes médicos receberiam
informações como esta, de um colega:
“Paralisia
parcial com afasia motora... a autópsia revelou hemorragia cerebral no lobo
frontal direito. Talvez houvesse um rabisco apressado, de último
minuto: “Êste paciente era canhoto” como se o próprio médico julgasse o
detalhe coisa de pequena monta. E assim o julgava, de fato.
Ou:
“Caso de afasia auditiva — resultado de acidente — estilhaço no lobo frontal direito.”
E novamente a observação despreocupada, quase omitida: “Paciente canhoto.”
Ou:
“Caso de afasia visual... tumor no lobo frontal direito... paciente canhoto.”
Lesão
no lobo frontal direito — afasia — paciente canhoto.
Sempre canhoto. Sempre — quando uma lesão no lado direito
do cérebro tinha como resultado perda da fala. Mas nunca quando a
vítima era destra. Quando era destra, como acontece com a grande maioria
das pessoas, a lesão causadora da perda da fala era sempre no lado esquerdo
do cérebro.
Finalmente,
estavam preparados para ventilar o que eles sabiam, o que haviam provado,
o que seus próprios olhos tinham visto, o que para eles era axiomático. Estavam preparados para sustentar que os dois hemisférios do cérebro
funcionavam exatamente da mesma maneira.
A coisa
ultrapassara a simples coincidência. Tôda a questão começava a perder seu
aspecto acidental e a apresentar-se firmemente como uma lei.
Era uma lei.
A lei
era esta:
A
grande maioria das pessoas são destras. Em todas as pessoas destras, o
hemisfério esquerdo do cérebro" está muito mais altamente desenvolvido do
que o hemisfério direito. Em todas as pessoas canhotas é o hemisfério direito o
do- ftiinahte. Os centros da linguagem, a zona de Broca e as outras estão
localizados no hemisfério esquerdo das pessoas destras e vice-versa. Os dois
hemisférios do cérebro, que apresentam um aspecto idêntico, mesmo ao
microscópio, funcionam diferentemente nas pessoas destras e canhotas.
Aonde
nos leva isto?
As
conclusões mais surpreendentes:
Primeiro:
que os centros da linguagem apresentam uma relação muito
estreita e definida com a mão. (Poderíamos concluí-lo pela maneira como a
linguagem se originou: através da mão).
Segundo:
que os centros da linguagem podem estar em qualquer um dos hemisférios, mas
nunca estão em ambos. Terceiro: que não se encontram em
nenhum dos hemisférios, por ocasião do nascimento.
Quarto:
que, por conseguinte, cada um de nós faz os seus próprios centros da
linguagem, e os desenvolve no hemisfério oposto à mão que mais utiliza.
Nascemos
sem a linguagem. Em parte alguma do cérebro há algo que algum dia nos leve a
falar sem instrução. A linguagem tem de ser formada no cérebro. A
quantidade e a espécie de pensamento que poderemos realizar durante a nossa
vida depende, grandemente, do grau em que possamos desenvolver os nossos
centros da linguagem.
Ao
nascer, nenhuma palavra. A criança, porém, começa a ouvir palavras, a emitir
sons, a agarrar as coisas. Quase sempre, pelo longo hábito da raça, ou pela
hereditariedade, ou pela instrução, ou pela imitação, utiliza mais a mão direita.
Quando está definitivamente determinado qual vai ser a mão mais usada, nesse
momento está determinado se os centros da linguagem vão ser no lado direito ou
esquerdo do seu cérebro. Qualquer um dos lados pode ser utilizado, qualquer dos
lados presta igualmente, pois ambos sãò anatòmicamente idênticos,
mas na realidade apenas um lado é utilizado para a linguagem. O outro
lado, em condições normais, permanece sem linguagem por tôda a vida — sem
linguagem em todos os aspectos do têrmo. Sob o aspecto da linguagem falada,
porque não há sons lingüísticos na circunvolução temporal
superior direita de uma pessoa destra; sob o aspecto da linguagem escrita,
porque não há imagens de palavras na sua circunvolução angular
direita; e sob o aspecto da possibilidade de falar, porque não há mecanismo
para a articulação de palavras naquilo que corresponde à zona de Broca.
Assim,
um homem que não é surdo para outros sons, que não é cego para outras coisas, e
que ainda pode proferir sons, pode tornar-se surdo, cego e mudo em relação à
linguagem se o hemisfério dominante do seu cérebro fôr lesado, mas não
se o hemisfério não dominante é que fôr lesado. Ele não perdeu a percepção
pelos sentidos, mas apenas o conhecimento das palavras, adquirido pela sua educação.
Antes,
porém, de sabermos de tudo isto, era muito natural — não acham? — supor que
nós pensávamos e falávamos com todo o nosso cérebro.
Hoje,
não! Podemos perder uma metade de nosso cérebro sem
perdermos uma”Ghica idéia. "Ainda assim, podemos continuar a ler, a escrever, a falar; podemos continuar a raciocinar, a amar, a
odiar, a julgar, a querer, tão bem como anteriormente. Nossa personalidade não
se desintegrará, e tampouco a nossa moral, o nosso intelecto — se conservarmos
êsse hemisfério dominante.
As
crônicas registram muitos casos em que uma metade do cérebro, um dêsses dois
hemisférios perfeitamente idênticos, foi removida por uma operação, e o
paciente reteve todas as suas faculdades. Mas se o hemisfério dominante,
contendo a zona de Broca, fôr completamente destruído, então o indivíduo na
verdade decairá intelectual, emocional e moralmente. Nada no homem é mais
espantoso do que êste predomínio de um dos dois hemisférios, anatòmicamente semelhantes em cada aspecto.
E,
entretanto, estamos apenas no comêço das revelações relativas ao espírito,
proporcionadas por estas investigações em tôrno dos distúrbios da linguagem.
Tomemos
o caso de Mark Brearley. Brearley era um artista. Certo dia, recebeu uma
pancada. Quando se restabelecera suficientemente para um giro, dirigiu-se,
apoiado no braço da espôsa, para o seu atelier, a fim de dar uma olhada no
quadro em que estivera
trabalhando antes do acidente. Ela afastou o pano
que pendia sôbre o cavalete e Brearley mirou a sua pintura, uma paisagem de
inverno. Olhou, apertou os olhos com as mãos, tornou a olhar, voltou-se para
ela, confuso.
—
Êsse quadro não é o meu! —
disse. — Nunca vi essa coisa antes! Que é isso? Um papel para forrar paredes?
Uma garatuja
de colegial? Isso não tem sentido.
De
repente, rodou para o lugar de onde pendia uma cópia da “Mona Lisa”.
—
Por que tiraste daqui o meu
da Vinci?—perguntou.
— E que coisa é essa pendurada no seu lugar? — E em seguida, em
voz mais baixa: — Estarei louco?
Não, ele
não estava louco. Podia ainda falar, ler, escrever,
compreender a linguagem dos outros, pensar. A coisa estranha que acontecera no
seu caso era que um coágulo apoplético atacara os centros de reconhecimento do
seu cérebro, e exatamente essa parte que conhecia a única coisa do mundo que ele
precisava conhecer e com a qual se importava: a arte. Já não podia reconhecer
pinturas — embora pudesse vê-las e pudesse reconhecer outros objetos e
as pessoas; já não podia distinguir um quadro de outro, o bom do mau, uma tela
sua de uma de Miguel Ângelo. Para ele, tudo eram garatujas.
Do
mesmo modo, um músico, embora ainda possa ouvir música, poderá, se um
coágulo se formar exatamente no ponto devido, perder tôda a cultura e
discernimento musicais, ou poderá tornar-se cego para as notas em vez de cego
para as palavras. Um contador pode perder todo o seu conhecimento ou
compreensão de números. Um homem de negócios, retendo todas as outras
faculdades, conservando- se mesmo capaz de ler e de
falar, pode ficar incapacitado mesmo para assinar o seu próprio nome.
Que
longa caminhada no conhecimento do espírito fizemos, desde que Broca pela
primeira vez interrogou o cérebro morto de Tan! Alguns chegam mesmo a
suspeitar, embora isso esteja longe de ser provado, de que há prateleiras
independentes, não só para cada língua, como o caso de Handover indicou, como
também para notas musicais, para os toques de um pincel, para os números, para
cada espécie de objeto e símbolo. Nas zonas visuais, há um lugar que, uma vez
lesado, torna'a vítima incapaz de reconhecer rostos, mesmo os de sua própria
família, embora os veja claramente.
Perceber às coisas e conhecê-las
não é o mesmo. Perceber é cõSgSBTto. conhecer é adquirido. Podemos,
quando crianças, perceber as coisas antes de reconhecê-las; e podemos, como
Handover, como Brearley, continuar a perceber as coisas muito tempo depois de
havermos deixado de as reconhecer.
Êstes
centros cerebrais do conhecimento estão, como Broca suspeitava, bem na
vizinhança dos centros da linguagem —• e estão apenas em um único
hemisfério. As faculdades que se combinam com a linguagem para produzir o pensamento
puro estão, todas elas, localizadas nessa metade educada de nossos
cérebros.
Ambos
os hemisférios são idênticos por ocasião do nascimento. Ambos são igualmente
impressionáveis e educáveis. Para um deles, trabalhamos
para melhorar. O outro continua, por tôda a vida, sem educação, e subordinado.
Ambos os hemisférios do cérebro percebem. Apenas um conhece, fala, pensa.
Essa capacidade de conhecer vai-se depositando em nossos cérebros
inteiramente por nossos próprios esforços, sobretudo nossos esforços para
depositar palavras. Tudo isso, a obra de uma vida inteira, pode ser apagado num
efêmero segundo por uma hemorragia no lobo dominante.
Na
educação que o homem tão penosamente dá a um hemisfério do seu cérebro (por
que razão há um só, eis o que não sabemos, a não ser que se trate da
incorrigível preguiça da criatura) repousa tôda a diferença entre o homem e o
macaco — entre um e outro homem.
Hoje,
temos o que Broca imaginou que teríamos algum dia e que nos invejou: excelentes
mapas do cérebro indicando o local de suas várias funções motoras e
sensoriais, e localizando-as tão exatamente que o cirurgião do cérebro,
aplicando um estímulo elétrico a zonas sucessivas, pode mover um dedo, um
músculo, de cada vez, exatamente como se estivesse puxando os cordéis de um
fantoche. Os problemas das funções dos lobos frontais, essas grandes zonas
silenciosas em que não se encontra nenhum dos centros das funções motoras e
sensoriais inferiores, ainda não foram resolvidos, mas geralmente se acredita
que eles sejam a sede das faculdades superiores, da memória, razão, discernimento,
consciência.
Nestas
grandes zonas de associação (vejam o desenho de Shakespeare) se realiza essa
síntese de todas as atividades do cérebro que resulta em pensamento e ação.
Não
poderia haver verdadeira ciência da psiquiatria enquanto êste arroteamento básico do cérebro não tivesse sido realizado. A psiquiatria
não pretènde estudar uma alma independente do corpo. Ela estuda o espírito
como a uma manifestação da matéria." ' 1 """"
Ela
declara, como sua premissa maior, que não'há duas coisas, corpo e espírito, mas
apenas uma coisa, o corpo-es- pírito; e que não se pode considerar essa
coisa única, de duas maneiras: como um espírito sem um corpo e como um éorpo
sem uni espírito. Os dois são tão inseparáveis que é impossível dizer onde
térmína o corpo e onde começa o espírito.
Assim,
pode-se compreender que a psiquiatria, que se fundamenta na unidade do corpo e
do espírito, não poderia de modo algum ter sido iniciada enquanto Bell, Darwin,
Huxley e, sôbre todos eles, Broca, não houvessem realizado o seu trabalho. as
principais questões da psiquiatria — o que e o espírito, como opera,
como adoece, como pode ser curado, como se pode evitar que adoeça — não
poderiam õfé modo“algum ser resolvidas enquanto não começássemos a
considerá-las no corpo-espírito.
Tivemos
de reconhecer que a cura de espíritos doentes não é uma questão de ética
e nem mesmo de psicologia, senão, primariamente,
uma questão de medicina.
Tivemos
de reconhecer que precisávamos de uma nova ciência, de uma
fisiologia-psicologia, para nos ocuparmos com êste corpo-espírito. E essa nova
ciência, quando apareceu, foi a psiquiatria.
Assim,
como já haviam sido berço da cirurgia, os campos de batalha
foram o berço da psiquiatria. Assim como as guerras, com seus corpos mutilados,
deram à cirurgia ás suas grandes oportunidades, assim as guerras, com seus espíritos
mutilados, deram à psiquiatria as suas grandes oportunidades.
Vamos
visitar um hospital, atrás das linhas, em 1914.
OS FINALMENTE
Reafirmo, o que falta é o conhecimento concreto do tema
buscando evitar a criação de #pseudosmistérios e falsos temores deflagrando um
duelo de “tiros no escuro”, com a emoção sobrepondo-se à objetividade. Duelo
também voltado para atender mais a interesses corporativistas do que a
interesses clínicos.
Protocolos científicos merecedores de crédito, quando os há,
são escassos, limitados, e não são levados à sério. Em compensação abundam
palpites e #achismos. Neste contexto pouco adiantam os encontros que priorizam
um domínio maior da questão, pois os participantes já ingressam no debate com
cartas marcadas e raramente escutam os argumentos discordantes.
GREVE NA ESCOLA BAHIANA DE
MEDICINA E SAÚDE PÚBLICA
Pela primeira vez, no dia 29.11.2004, os alunos da Escola Bahiana de Medicina
entraram em greve contra
o aumento das mensalidades que, na época, consideravam abusivo. Convém lembrar
que desde sua inauguração, e até hoje (2015), as mensalidades cobradas pela
Bahiana sempre foram as menores entre as Escolas de Medicina de Salvador e a
segunda ou terceira mais barata das Escolas de Medicina de todo o Brasil. Dessa
data em diante houve outras greves. Numa delas, não me recordo o ano, os alunos
penduraram um banner na porta da Escola, na sede de Nazaré, com uma inscrição
que dizia mais ou menos assim: “Esta é uma escola de
Psicologia, disfarçada em Escola de Medicina.”
O POR QUÊ DO DESCONTENTAMENTO
Mas por que e a quem se destinava a crítica? A observação
irônica alfinetava a nova postura dos dirigentes da Bahiana (a diretora Maria
Luiza, à frente) de reorientar o curso de graduação para propiciar o
aprendizado de uma formação médica mais humanizada. De início, contratou-se
dois psicólogos (Mônica Daltro e Antônio Carlos) que “aterrissaram sem
paraquedas”[17] no Curso de Psicologia
Médica, do qual eu era o professor responsável - e foram gentilmente cooptados
por mim, atendendo ao pedido do Professor Norival Sampaio titular do
Departamento de Psiquiatria. Ao mesmo tempo, criou-se as disciplinas de
Psicologia Médica 1 (primeiro ano), Psicologia Médica 2 (segundo ano) e
Psicologia Médica 3 (terceiro ano).
Aparentemente, o desapreço manifestado por alunos da
graduação e alguns professores de medicina ao aprendizado dos saberes ditos
psicológicos - nada a ver com a profissão de psicólogo – foi atribuído não
somente ao desperdício de tempo de graduação do aluno, mas, principalmente, a
convicção de que a prioridade de uma Escola de Medicina é o ensino da Medicina.
OS ARGUMENTOS DITOS PELOS ALUNOS
Nas palavras dos alunos “é muita psicologia
para uma Escola de Medicina”. Pior, argumentavam, “é que ocupa
impropriamente uma parte significativa do tempo curricular, cronicamente
escasso, disponibilizando-o para o aprendizado de saberes psicológicos numa
escola que deveria priorizar o ensino da teoria e da prática médicas.” Apoio a prioridade, mas não
confundo prioridade com exclusividade pois a Medicina não pode se dar ao luxo
de rejeitar qualquer conhecimento de outro ramo da ciência – que seja capaz de
ajudar o médico a promover melhor a saúde das pessoas.
Posteriormente, diretoria e docentes acordaram com uma
mudança estratégica dos nomes das disciplinas mantendo, no entanto, o mesmo
objetivo de priorizar o aprendizado de uma prática médica mais humanizada. Naquele
momento, nasceu a disciplina “Semiologia Mental” que veio substituir a
Psicologia Médica3, ministrada no sexto semestre da graduação.
QUEM ESTÁ COM A RAZÃO?
Até hoje, os litigantes creem que estão certos porque acham
que estão certos, postura que me faz lembrar a publicidade recente (2014) da
cerveja Schin. “Por que a cerveja? Por que sim”! Agindo dessa forma, os
contendores acabam por dificultar a percepção objetiva das nuances do problema
e, por isso, muitas vezes assumem atitudes fanáticas e irracionais.
EM BUSCA DA ESSÊNCIA DO
ANTAGONISMO
E aqui cabe uma pergunta: admitindo-se
que há uma solução para o antagonismo – e, particularmente, acredito que há –
como se poderia alcançá-la?
De início, sou a favor de um
debate investigativo que elimine das discussões os absurdos teóricos e as práticas
obscurantistas não validadas pela verificação científica[18];
e, simultaneamente, defendo que se aprofunde os estudos dos argumentos contraditórios,
buscando reduzi-los a uma questão-raiz que propicie
o surgimento de pontos simples e claros suficientemente
viáveis para conduzir a soluções clínicas mais consistentes.
O Estudo de sinais de
enfermidades encontrados nos fósseis, múmias e outros objetos arqueológicos são
conhecidos por Paleopatologia.
O conhecimento obtido por estes estudos até o momento é bastante fragmentado,
porém nos permite chegar a conclusões importantes. As lesões ósseas são as
mais claramente expostas na peleopatologia: Exostoses, sinais de artrites,
traumas, tumores a malformações congênitas podem ser observados em fosseis do
homem que viveu no paleolítico. As múmias egípcias com cerca de 4.000 anos são
as fontes mais ricas para estes estudos. Estão bem documentados lesões como
tuberculose óssea (mal de Pott), mastoidites, doença de Paget dos ossos e pé
torto congênito. Nas partes moles e vísceras tem sido possível identificar
arteriosclerose, pneumonia, pleurites, cálculos renais, biliares, além de
apendicites e lesões cutâneas semelhantes as da varíola e esquistossomose. Podemos
inferir que as principais formas de enfermidades, não cada doença em
particular, têm sido no geral as mesmas ao longo de milhões de anos.
Ao que tudo indica, a medicina,
palavra derivada do latim mederi, que significa: curar, cuidar,
medicar, intervir no corpo e na mente das pessoas – ou, resumindo, toda forma
clínica de cuidar do outro - existe desde que a espécie humana surgiu na terra.
Afirma-se que desde a origem, há cerca de um milhão de anos, o homo
sapiens sempre se preocupou com a saúde, a doença, a morte e a
cura de suas moléstias.
MENTE E ENFERMIDADES
O que ocorre na “cabeça” pode ter impacto nas etiologia e
desenvolvimento das doenças? Não me refiro aos mal-estares transitórios do
tipo: dor de estômago, antes de um entrevista para emprego, dor de cabeça antes
de uma relação sexual indesejável ou perda involuntária de urina, antes de um
exame estressor, mas a patologias que põem em risco a própria vida, tais como:
cardiopatias graves, infecções severas, síndromes crônicas debilitantes – artrite
reumatoide, asma brônquica, diabetes, etc. (DARIAN LEADER e DAVID CORFIELD)
Através de todas as especulações com relação à natureza do homem, encontra-se a convicção de que este
é formado por duas coisas, um Corpo e um Espírito (ou Alma), e que estas duas coisas não são em absoluto, inseparáveis. Pelo contrário, tem-se sustentado que são altamente separáveis. A alma poderia, afirma-se, separar-se do corpo na morte e continuar uma existência independente.
Apegando-se a este ponto de
vista, mesmo os homens de inteligência
mais profunda foram impedidos de -procurar no corpo, com afinco,
a origem do espírito. Mas outras coisas também os impediram. A ciência não havia avançado até este ponto
(AGUARDE A PARTE DOIS)
[1]
Refere-se
investigação teórica do ser; no heideggerianismo,
abstração relativa ao ser em si mesmo, em sua dimensão ampla e fundamental, em
oposição ao ôntico, que se refere aos entes múltiplos e concretos da realidade.
[2]
No Brasil publicado pela EDITORA CATA VENTO, 1ª EDIÇÃO 1945, 311 PÁGINAS, FORMATO 14x21 cm.
[3]
Forma de pensamento comum a certos sistemas filosóficos e crenças religiosas
que atribui ao ser humano uma posição de centralidade em relação a todo o
universo, seja como um eixo ou núcleo em torno do qual estão situadas
espacialmente todas as coisas (cosmologia aristotélica e cristã medieval), seja
como uma finalidade última, um télos que atrai para si todo o movimento
da realidade (teleologia hegeliana).
[4]
Dizem os religiosos que a alma é uma entidade imaterial, invisível, imortal,
consciente de si, que sobrevive ao corpo. A palavra hebraica néfesh, traduzida
por “alma”, significa ‘criatura que respira e também #soprodedeus, com o qual
ele deu vida ao homem, originalmente feito de barro. O espírito só pode morrer
se deus mata-lo, como castigo aplicado ao homem desobediente. Acredito que o conceito de alma surgiu quando
o homem primitivo testemunhou a morte de seu próximo e acreditou que “o último
suspiro”, antes da parada respiratória, era a prova da alma abandonando o corpo
É até possível que alguém tenha enxergado a alma deixando o corpo... Já a
palavra espírito vem do grego “pneuma” (ar) conceito criado por químicos e
fisiologistas. Parece que também tem parentesco com o “spirit”, cheiro
invisível e característico que emana das bebidas destiladas.
[5]
Substantivo masculino: 1. Tendência para tentar fazer com que prevaleça
o ponto de vista da psicologia sobre o de outra ciência qualquer, numa questão
comum. Termo ou conceito da psicologia, especialmente quando é usado num
contexto não técnico.
[6]
Citado por
Cláudia Castro de Andrade na Dissertação de Mestrado intitulada
NEUROEPISTEMOLÓGICOS SOBRE A RELAÇÃO MENTE E CÉREBRO, Universtdade Federal do Rio
de Janeiro em 2014.
[7]
Relativo a episteme (conhecimento ou saber como um tipo de experiência);
puramente intelectual ou cognitivo; subjetivo.
[8]
Citado
pelo filósofo Paulo Ghiraldelli de [1] Rorty, R. A
filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1995.
[9]
“Os faraós eram os governantes das
cidades egípcias. Poderosos e ricos, eles acreditavam que tinham mais direito à
vida após a morte que as outras pessoas, por isso, o coração de suas múmias
eram preservados. As pessoas com menos poder e menos dinheiro eram mumificadas
sem o coração. Então, teria menos virtudes que os faraós na nova vida de morto.”
Roberta Marques in A Tardinha,
Salvador, Bahia, 17 de maio de 2014.
[10]
O coração é uma excelente bomba de sucção e ejeção; acolhe, de todo o corpo, o
sangue venoso (sem oxigênio) e o envia para os pulmões – pequena circulação. A
seguir, recebe desses pulmões o sangue arterial (oxigenado) e o distribui para
todo o corpo – grande circulação. Entretanto, o coração não é capaz de
perceber, de pensar, de sentir e de agir conscientemente. Acredita-se, por
enquanto, que o único órgão do corpo que faz isso é o cérebro. Por isso, quando
afirma-se: Fiz o que o meu coração mandou! Cuide de meu coração! Meu coração
olha por você! O meu coração é seu! Dentro do meu coração tem um lugar
reservado para você! Você partiu o meu coração! O meu coração cabe mais um!
Quem beija o filho adoça o coração da mãe!, etc., se está utilizando metáforas em profusão.
Enfim, quando se fala de ter o coração partido, ter o coração na boca e sentir
o coração parar, se se quiser ser mais justo e mais verdadeiro, substitua-se a
palavra CORAÇÃO pela palavra CÉREBRO, pois, o coração, a bomba maravilhosa de
nosso corpo, nada tem a ver com as questões citadas.
[11]
O Gabinete do Doutor Caligari) é um filme alemão expressionista e mudo de 1920, dos gêneros terror e suspense, dirigido por Robert
Wiene. Extremamente influente no meio cinematográfico, compõe uma metáfora do
olhar deformado com ruas estreitas e entrecortadas, telhados góticos e cubistas e
prédios e objetos deformados, resultando em uma das obras-primas das primeiras
décadas do cinema e
uma das mais importantes referências estéticas até hoje.
[12]
Partenon é o nome de um templo, erguido no século
V a.C. na Acrópolis, uma montanha localizada no centro da cidade de Atenas, em
homenagem a Atenas, deusa grega da sabedoria e das artes. Os
romanos a chamavam de Minerva.
[14]
“Os limites da minha linguagem são os limites de meu mundo.” WITTGENSTEIN
[15]
John Milton (1608-1674), representante do classicismo inglês e autor do
célebre livro O Paraíso Perdido, um dos mais importantes poemas épicos da
literatura Universal. Foi político, dramaturgo e estudioso de Religião.
[16]
William Shakespeare, inglês, é considerado o mais importante dramaturgo
e escritor de todos os tempos.
[17]
Verve de Mônica Daltro
[18]
“Na medicina, o inhame é indicado para purificar o sangue e fortalecer o corpo;
no candomblé, é usado com o objetivo religioso de purificar a alma.” Maria Stela de Azevedo Santos
[19]
O processo de peer review (revisão paritária) consiste em submeter o artigo a
uma comissão revisora, geralmente composta de três pesquisadores que devem
opinar pela aceitação integral do paper proposto, ou pela aceitação mediante
alterações, ou pela simples rejeição do artigo.
[21]
“Mulheres, homens e crianças provavelmente foram devorados por Neanderthals”, afirma Marylène
Patou-Mathis, pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), na
França, e especialista em pré-história.