sábado, 8 de março de 2008

MEDICINA: NOVAS COMPETÊNCIAS, NOVOS DESAFIOS

MEDICINA: NOVAS COMPETÊNCIAS, NOVOS DESAFIOS

José Pinto de Queiroz Filho [1]

"Lamento não estar iniciando meus estudos hoje. As possibilidades de pesquisa atuais são bem mais interessantes do que há quarenta anos, quando comecei", Steven Rose, neurocientista. Declaração feita à revista VEJA, edição 1976, de 04 de outubro de 2006.

Primórdios

Desde os primórdios, pela própria singularidade do labor médico, o estudo das dimensões humanas, distintas da biológica, sempre fizeram parte do ideário da Medicina.

Historicamente, o ser humano sempre divinizou o médico atribuindo-lhe competência para atender às suas múltiplas necessidades, incluindo a escuta e a resolução de suas aflições. Pode-se compreender tal atribuição atentando-se para o fato de que, na origem da Medicina (oráculos, xamãs, feiticeiros), as práticas de saúde eram mediadas por relações deificadas, sustentadas por temáticas religiosas primitivas e/ou do senso comum.

O domínio do biológico

No início do século XX (principalmente, após as duas Guerras Mundiais), desencadeou-se um inconteste e extraordinário desenvolvimento da tecnologia aplicada à Medicina – um caminho sem volta – trazendo incalculáveis benefícios para a humanidade. Junto, o desenvolvimento simultâneo de saberes biológicos - habitualmente, produzidos pelos próprios médicos no exercício de suas práticas -, gerando frutos simultâneos nas áreas investigativas e curativas de ponta. À luz forte das evidências, o clínico sentiu-se estimulado a procurar no corpo as respostas para explicar as doenças. Como conseqüência, diminuiu o seu interesse pela subjetividade do paciente e passou a eleger a abordagem somática como paradigma da prática médica. A abordagem psicossocial foi colocada em segundo plano.

Patologia Biográfica: abordagem tridimensional, biopsicossocial

A partir dos anos vinte deste século (XX) começam a surgir críticas paulatinamente crescentes à maneira pela qual se processa a prática clínica. Existia uma mal estar, que começara a se difundir em alguns meios médicos, principalmente alemães, quando ao desconhecimento recorrente da pessoa dos enfermos por parte dos médicos. Estes os encaravam como meras máquinas corporais, despreocupados com os sofrimentos mobilizados pelo estado da enfermidade nos indivíduos. Mediante esta crítica, se estabelecia uma distinção fundamental, se destacando um outro campo de preocupação tecnológica para os clínicos. Assim, seria necessário considerar além da enfermidade somática propriamente dita, explicada num discurso biológico, a vivência da enfermidade, isto é, os seus efeitos na subjetividade do indivíduo que enferma.” [2]

No evoluir, a ênfase no biológico começou a criar conseqüências paradoxais:

- Os avanços significativos dos saberes e da tecnologia, não conseguiram produzir mudanças profundas na qualidade de vida do paciente; tampouco aperfeiçoar as práticas de saúde fundamentadas em valores humanitários sólidos. [3]

- Incomodados, os próprios usuários do sistema de saúde começaram a cobrar, do médico, mais atenção, acolhimento, escuta, argumentando: tais atitudes são tão importantes para o processo de cura quanto a competência técnica. [4]

- A cientificidade da prática, com ênfase no soma, não está sendo suficiente para diminuir a popularidade da medicina não-convencional, dita, sem base cientifica.

- Enfim, o sucesso da Medicina focada na tecnologia do biológico, que deveria ser acompanhado pelo aumento do grau de satisfação de médicos e pacientes, vem mostrando um número crescente de desiludidos e insatisfeitos. [5]

Inicialmente a receptividade da instituição médica foi nula”. [6], mas influenciada por conceitos oriundos da psicanálise, foi atualizando a validação do sujeito. Na progressão, no momento em que a psicanálise mostrou-se um campo disciplinar atrasado e pré-paradigmático [7], povoado de diversidade de escolas, em que cada uma delas reivindica o domínio absoluto do saber único e universal sobre a psiquê humana -, a medicina foi se desvencilhando, pouco a pouco, dos marcos teóricos da doutrina freudiana e passou a privilegiar os quadros conceituais de outras teorias psicológicas para reinventar seu próprio caminho.

A decisão de validar clinicamente o sujeito biográfico fortaleceu-se na medida em que as dimensões psicológicas e sociais foram se legitimando cientificamente, firmando-se como causalidades de outra natureza -, agentes co-responsáveis no processo do adoecer. Acordou-se, então: a abordagem da doença não pode se processar unicamente dentro de uma visão puramente biológica devendo considerar as vivências decorrentes do adoecimento, bem como o quanto a qualidade de vida - a sensação subjetiva de bem estar - se encontra comprometida. Apesar disso, deve-se atentar para o fato de que “...em todos os quadros conceituais em que a problemática é formulada não se postula que estes fatores psíquicos são exclusivos, mesmo que considerados fundamentais, pois se articulam com fatores outros, de ordem somática, e do seu entrelaçamento causal serão produzidas alguma enfermidades somáticas.[8]

E mais: “Na tentativa de uma definição abrangente, alguns autores priorizam ser (a qualidade de vida) envolvida por todos os aspectos que temporalmente cercam o diagnóstico e tratamento de uma doença e se estendem além da questão médica (mecanicista), incluindo estilo de vida, comunidade e vida familiar. Shin & Johnson sugerem que a qualidade de vida consiste na possessão dos recursos necessários para a satisfação das necessidades e desejos individuais, participação em atividades que permitem o desenvolvimento pessoal, a auto-realização e uma comparação satisfatória entre si mesmo e os outros. Da mesma forma, o "Grupo para Qualidade de Vida" da Organização Mundial de Saúde inclui em sua definição a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto cultural e no sistema de valores em que ele vive e em relação a seus objetivos. [9]

Por conseqüência, os eventos biográficos do sujeito revitalizam-se no campo dos saberes e da prática médica, impulsionando o clínico a se ocupar, outra vez, com os aspectos psicossociais de seus pacientes.

Para implementar tais habilidades, os currículos das escolas médicas estão sendo reformulados com a introdução de novas disciplinas essenciais para o aprendizado das novas competências, com status idênticos àquelas ditas biológicas. Hoje, o seu braço clínico mais importante são as disciplinas Semiologia Mental, Psiquiatria e Psicologia Médica, as duas últimas ministradas na maioria das escolas de Medicina.

Some-se a isso, a tentativa de sistematizar novas (!?) habilidades, tais como:

1 – A COMUNICAÇÃO CLÍNICA, como procedimento privilegiado para o sucesso do ato médico

A comunicação é a essência de qualquer atividade humana. Em Medicina, sempre foi onipresente, a cada passo. Dada a sua relevância no exercício da prática médica, a tendência atual é considerar o aprendizado pragmático da comunicação clínica como nova (?!) habilidade instrumental indispensável para a construção de uma relação médico/paciente bem-sucedida, base do sucesso de tudo mais que lhe sucede - diagnóstico, prognóstico, terapêutica.

2 – Terapêuticas NÃO ALOPÁTICAS

O uso das drogas, altamente necessárias quando bem indicadas, se utilizadas isoladamente nem sempre é suficiente para atender ao paciente como o todo que ele é. Além disso, a medicalização, pura e simples, estimula a sua passividade, tornando-o menos capaz de co-participar de seu próprio tratamento. Para capacitar-se às novas exigências, o médico não especialista passou a se familiarizar com outras formas de terapia não/alopática -, naturais, vicinais, psicoterápicas.

3 – VIESES mais amplos

A patologia do ser humano não se resume ao soma. É muito mais que isto. “Realizar o diagnóstico no nível lesional ou no disfuncional seria manter-se no plano superficial da enfermidade.[10] A patologia está localizada no corpo anatomopatológico, mas também no corpo afetivo e no corpo das inter-relações pessoais. Por isso, não se pode ignorar “... coisas fundamentais como de que o doente é antes de mais nada uma pessoa que sente e sofre como qualquer outro humano, principalmente quando se defronta com a experiência e a possibilidade da morte.“ [11]

Os que se concentram nos dados somáticos, dando pouca importância aos fatores biográficos, ignoram que só podemos exercitar, com eficácia, a nossa atividade clínica quando nos centramos no paciente como sujeito, valorizando a sua totalidade biopsicossocial.

4 – Incursões na área SOCIOECONÔMICA

A onipresente dificuldade socioeconômica da maioria dos enfermos de nosso país é outro dado que impele o médico a ampliar a percepção do processo saúde-doença para além do enquadre clínico da consulta tradicional.

Enfim, são novas competências e novas responsabilidades próprias da prática médica do século XXI que tem o objetivo de promover a saúde do paciente na sua integralidade biopsicossocial.

Concluindo

A Medicina, nos primórdios, ocupava-se em compreender o ser humano. As evidências de que o corpo é a causa primeira das enfermidades, levou o clínico a privilegiar a explicação da doença, em detrimento da compreensão do doente. O vínculo explicativo (causal) predominou (e, de certa forma, ainda predomina) sobre o vínculo compreensivo (significado). Posteriormente, os fatores psicossociais começaram a ser implicados como co-responsáveis na precipitação e/ou na manutenção das enfermidades, e o clínico viu-se obrigado a revalidar o liame compreensivo. O novo olhar também exigiu, das escolas médicas, mudanças nos currículos para adequá-los aos novos tempos.

Pós-conclusão: a propósito de CRÍTICOS

Com a ampliação das perspectivas semiológicas e terapêuticas no espaço da prática médica -, que ratificou a hegemonia médica na área de saúde -, surgiram críticos e opositores. BIRNE resumiu a questão numa frase emblemática, quando criticou a orientação clínica de BALINT: “A Medicina se transforma miticamente na promotora da felicidade humana, na medida em que tende a se ocupar de uma parcela crescente dos conflitos apresentados pelos indivíduos no seu cotidiano”. [12]

Das críticas, emergiram acusações. Comentaremos duas:

1. O expansionismo da Medicina converte o profissional num representante dos interesses das elites, “lugar estratégico do controle político das massas”. (BIRMAN, 1980)

2. O médico resiste a dividir o poder e a hegemonia na área de saúde.

Discordo de ambas. No meu entender, trata-se de uma avaliação equivoca dos profissionais de saúde de atribuir, a cada médico, a competência pelo campo todo da Medicina.

Por conta desta perspectiva destorcida, outros críticos defendem a necessidade de se fragmentar a Medicina em novas profissões múltiplas e delimitadas, sob a alegação de que os saberes médicos se agigantaram de tal forma que não podem mais ser domínio de uma só profissão.

Os médicos estamos cientes de que a Medicina (e não somente a Medicina) possui saberes e práticas cujas amplitudes nenhum profissional, individualmente, é capaz de abarcar. É certo que, genericamente, somos melhores informados do que o leigo, e menos que um colega especialista, mas tal constatação não implica em expansionismo ou na necessidade de manter, a todo custo, o poder e a hegemonia. No meu entender, tal postulação traduz uma tentativa ingênua de fragmentar as práticas para reduzir a influência do médico na área de saúde. Esquecem-se, no entanto, o que nos faz um grupo profissional coeso é exatamente a formação básica, comum, que todos temos de adquirir antes da especialização. Este é o fundamento que nos torna uma classe profissional indivisível, apesar das especializações.

LIVROS E TEXTOS CONSULTADOS

1. BIRMAN, Joel, Enfermidade e Loucura, Ed. Campus, RJ, 1980.

2. BALINT, Michael, O médico, seu paciente e a doença, Atheneu, Rio de Janeiro/São Paulo, 1975.

3. DELAY, Jean, PICHOT, Pierre, Manual de Psicologia, Toray-Masson, S.A. Barcelona, 1966.

4. FRANCISCO B. ASSUMPÇÃO JR., EVELYN KUCZYNSKI, MARIA HELENA SPROVIERI, ELVIRA M. G. ARANHA, Escala de avaliação de qualidade de vida, Arquivos de Neuro-Psiquiatria, v.58 n.1 São Paulo mar. 2000.

5. CAPRARA, Andréa; RODRIGUES, Josiane, A relação assimétrica médico-paciente; repensando o vínculo terapêutico (a.caprara@flashnet.it).

6. KUHN, T, A estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva, 1970.

Endereço para correspondência

Rua Wanderley Pinho, 243/1003, Itaigara, SSA, BA, 41815-270.

Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Ladeira de Nazaré, s/no., Salvador, BA.

Tel: 71 34917724 e 71 81823839.

mrjustice@oi.com.br



[1] Professor Adjunto de Psiquiatria e Semiologia Mental da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.

[2] BIRMAN, Joel, Enfermidade e Loucura, Ed. Campus, RJ, 1980, pg. 91.

[3] CAPRARA, Andréa; RODRIGUES, Josiane, A relação assimétrica médico-paciente; repensando o vínculo terapêutico (a.caprara@flashnet.it)

[4] DELAY, Jean, PICHOT, Pierre, Manual de Psicologia Médica, Toray-Masson, S.A. Barcelona, 1966.

[5] Ibidem.

[6] BIRMAN, Joel, Enfermidade e Loucura, Ed. Campus, RJ, 1980

[7] KUHN, T, A estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva, 1970.

[8] BIRMAN, Joel, Enfermidade e Loucura, Ed. Campus, RJ, 1980, pg. 93.

[9] In Escala de avaliação de qualidade de vida, FRANCISCO B. ASSUMPÇÃO JR., EVELYN KUCZYNSKI, MARIA HELENA SPROVIERI, ELVIRA M. G. ARANHA, Arquivos de Neuro-Psiquiatria, v.58 n.1 São Paulo mar. 2000.

[10] BALINT, Michael, O médico, seu paciente e a doença, Atheneu, Rio de Janeiro/São Paulo, 1975.

[11] BIRMAN, Joel, Enfermidade e Loucura, Ed. Campus, RJ, 1980, pg. 73.

[12] BIRMAN, Joel, Enfermidade e Loucura, Ed. Campus, RJ, 1980, pg. 82.

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