sexta-feira, 29 de julho de 2011

IATROPATOGENIA - A comunicação mal sucedida entre médico e paciente.- ATUALIZAÇÃO

IATROPATOGENIA - A comunicação mal sucedida entre médico e paciente

José Pinto de Queiroz Filho[1].

Talvez a história da Medicina registre no futuro - se conseguir conservar seu humor fino - que uma das notáveis inovações médicas do século XX foi a redescoberta... do doente”. Abram Eksterman

Introdução

Um dos primados sacrais da Medicina é a frase latina primum no nocere – com o significado de: "Antes de tudo, não prejudicar". Isto é, se não se é capaz de fazer o bem, não se faça o mal.

Maleficências da prática médica

O médico pode causar mal ao paciente por imprudência, negligência, imperícia, e, acrescento: pela incompetência para se comunicar porque as palavras (podem ser) “... mais cortantes que o mais afiado bisturi ou mais analgésicas do que o mais potente entorpecente, resultando na adesão ou exclusão do paciente a um compromisso terapêutico”. [2], podendo gerar o chamado erro médico, intencional ou não. Desta forma, ele pode se tornar maleficente (fazer mal ao doente) praticando a chamada iatropatogenia (doença criada pelo próprio médico) gerada pela incompetência para se comunicar de forma bem sucedida.

Comunicação e empatia

Ser empático é ver o mundo com os olhos do outro e não ver o nosso mundo refletido nos olhos dele.” [3] A incapacidade para se comunicar de forma bem sucedida é, em última instância, consequência da falta de habilidade para empatizar – ou seja, para ver, ouvir, sentir e compreender os significados das mensagens enviadas pelo doente. Sem empatia, o médico fica impossibilitado de se mover com destreza no labirinto das interações e de suas pistas escorregadias, curvas traiçoeiras e becos sem saída incapacitando-se, assim, para reduzir o sofrimento, a angústia e o medo vivido pelo indivíduo adoecido.

Comunicação Iatropatogênica - Desqualificando a comunicação

A comunicação é desqualificada quando o médico (ou o paciente) se comunica invalidando a própria comunicação ou a do outro -, procedimento habitual, como veremos a seguir, nas interações clínicas entre médico e paciente.

Estudando as desqualificações comunicativas

De forma competente, Carmita Helena Najjar Abdo, livre-docente e professora do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, buscou identificar as formas de comunicação iatropatogênica acompanhando e anotando durante oito anos (de 1982 a 1990) as entrevistas colhidas pelos residentes de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. De posse dos resultados, procedeu a análise dos dados embasada no referencial teórico da Teoria da Comunicação Pragmática Humana. O trabalho converteu-se em tese de doutorado.[8]

Estudando a seqüência dinâmica das trocas de mensagens entre médico e paciente, pode observar a qualificação-desqualificação da comunicação e a chamada pontuação da sequência de eventos. [9] Deste viés, importa menos os conteúdos das mensagens, per se, e mais a identificação das regras criadas pelo médico e pelo paciente para reger o diálogo enquanto estão trocando informações.

Exemplos de desqualificações comunicativas

Entenda, o paciente pode desqualificar o médico e o médico desqualificar o paciente. Das desqualificações mais frequentes, selecionei as que se seguem:

Declarações contraditórias - afirma-se algo e, concomitante ou subseqüentemente, o seu oposto, um invalidando o outro.

Exemplos:

R: Como vai o seu relacionamento em casa?

P: Péssimo. Às vezes vai bem.

ou

P: Não quero ficar internado, nem continuar o tratamento. Tá bom, eu fico internado. Eu exijo. É melhor.

Mudanças bruscas de assunto – É a forma mais frequente de desqualificação encontrada na pesquisa de Carmita Abdo. Pergunta-se ou responde-se a algo que nada tem a ver com o assunto em pauta (dando a impressão de que não ouviu ou não está participando da conversa).

Exemplo:

P= paciente; R= residente.

Mãe: Ele não dorme e não deixa ninguém dormir, doutora. Não pára. Está agitado. Não se alimenta. (...)

R: Um momento, minha senhora. M. você está ouvindo o que sua mãe está falando?

P: Não.

R: 'Desligou' enquanto ela falava?

P: É.

R: O que você acha disso?

P: Sua beleza me distrai (mudança brusca de assunto).

R: O assunto agora é você, não a minha beleza. Sua mãe fala coisas de você, diferentes das que você contou. E agora?

P: 'Pirei' você?

R: 'Pirou'. E a alimentação? (mudança brusca de assunto).

P: Não faz falta. Não é bem isso. Tem horas que me alimento.

Comentários: paciente desqualifica a residente que, logo a seguir, o desqualifica. Esta sequência de desqualificações vai se repetindo durante o resto da entrevista numa sucessão que termina por minar a qualidade final da interação.

Tangencialização - Responde-se, em circunlóquios, de forma insatisfatória e superficialmente, evitando-se o tema central.

Exemplo:

P: ...Tenho um dom divino. Bato o olho em alguém e, se fico com cisma, pode ter certeza, “tem coisa”. Às vezes chego a sentir até arrepio.

R: Você sente que as pessoas têm acesso a estes seus pensamentos?

P: Às vezes. Uma vez, eu raspei a cabeça e, quando me olhava no espelho, me sentia parecido com um frade. Eu gosto de fazer o bem, principalmente às crianças; fazer o bem para os meus filhos e os filhos dos outros. As pessoas têm importância para mim. De sessenta e oitenta dias para cá, eu só quero ler a Bíblia. Acho que ela é a salvação. (tangencialização, estilo obscuro e mudanças de assunto).

Outro exemplo:

P: Você já tomou Haldol?

R: Não.

P: Então vai tomar, para ver como é gostoso. Tem sabor de ameixa.

R: Você já ficou muito triste alguma vez? (mudança brusca de assunto).

P: Já. Corriam lágrimas e eu arranquei todos os meus dentes, com uma linha (reage à desqualificação do residente tangenciando com um argumento aparentemente sem nexo e um tanto irônico).

R: Agora você está alegre ou triste? (desconfirmando. O paciente já havia dito que estava triste).

P: Alegre, muito alegre". (desconfirmando como reação à desconfirmação do residente).

Interrupção brusca: No início, e na maior parte da entrevista o residente insiste para que o paciente fale de si e de sua família. Após muitas hesitações, o paciente começa a falar sobre a família:

P: Meu pai é alcoólatra, minha mãe já foi alcoólatra até dois anos... (...)

R: Sua medicação vem chegando. Paramos por aqui hoje. (interrompe, desconfirmando e desqualificando).

P: Não lhe contei tudo que me pediu (tentando restabelecer o diálogo).

R: Conversaremos outras vezes!, encerrando a entrevista

No momento em que o paciente se dispôs a falar sobre a família o residente o interrompeu bruscamente sob o pretexto de que a medicação estava chegando, colocando-o, assim, num duplo vínculo insolúvel -, fale, mas fique calado - que simplesmente “matou” o diálogo .

Frases incompletas

Exemplo:

R: E os remédios?

P: Não vou tomar.

R: Assim complica... (frase incompleta. Complica o quê, a quem, por quê?).

P: O que complica?

R: O vazio que você sente. (?! A emenda, pior que o soneto).

Interpretações errôneas e literais de metáforas - sugere desatenção e falta de sintonia com o interlocutor.

Exemplo:

R: Você está cansado?

P: Não. Estou sem “pique”. Estou me cuidando. Senão eu “danço”.

R: Você gosta de dançar? (falta de atenção, centrando-se em si mesmo e desrespeitando o discurso do paciente, gerando uma interpretação errônea que confunde a metáfora com o literal).

Desconfirmação. Desqualifica desconfirmando o que o outro diz.

Exemplo:

R: Como está você?

P: Vou indo. Ou melhor, acho que já estou bom. Quero minha alta.

R: Sente-se bem? (desconfirma o paciente que já disse achar que está bom).

P: Sim. Preciso recomeçar meu trabalho na firma. Está tudo atrasado.

R: Que firma?

P: Ora, a minha. Você sabe. A empresa grande de que lhe falei.

R: Fale um pouco mais sobre ela. É muito grande? (desconfirmando).

P: Claro. Foi aquela que comprei com o dinheiro que ganhei na loteria.

R: Firma de quê?

P: Não me lembro. (em represália, desqualificando e desconfirmando o residente).

R: Bom. Também não vem ao caso. (...) (desqualificando o paciente). (...) Você não gostaria de trocar a sua firma por outras coisas que deseja?

P: Pelo quê?

R: Sua alta, por exemplo. Pela volta ao campo, ao seu trabalho. Pela liberdade de andar a cavalo, trabalhar na lavoura como antes. (desconfirmando as afirmações anteriores do paciente).

P: Seria bom não é?

R: Acho que seria.

P: Ainda não posso.

R: Por que não?

P: Porque quero continuar sendo dono de firma por mais um tempo. É importante para mim. (desqualifica e desconfirma as sugestões do residente, e tenta convencê-lo de que o seu delírio é importante para lhe garantir um mínimo de sanidade).

Comentários: neste relato, a desconfirmação (tipo habitual de desqualificação) está presente na maioria das intervenções do residente. O paciente afirma que se vê como dono de uma firma e em condições de alta hospitalar. O residente não lhe reconhece como tal. O vê como um paciente internado e doente. Mais adiante afirma: Você não é dono de firma, você é lavrador. E o paciente: ...quero continuar sendo dono de firma... é importante para mim.”

Estilo obscuro - gera certo grau de confusão entre os comunicantes, principalmente quando o médico utiliza o jargão profissional que o paciente não conhece.

Exemplo:

Médico: O que você tem é dismenorréia. É ela que está causando o edema de seus membros inferiores devido à congestão sanguínea uterina.

Paciente: O que é dismenorréia?

Maneirismo da fala - rebusca-se a linguagem, mas perde-se a objetividade.

Exemplo: o médico, do alto de sua sapiência, centrado em si e nas próprias palavras, explica a paciente as características de um tumor de seio: Quero que entenda, o seu tumor tem alta morbilidade, mas, felizmente, para sorte da senhora, baixa mortalidade. Além disso, soma-se a seu favor o fato de que o índice de sucesso do tratamento é de quase 90%...

Paciente: Significa que vou ficar curada?

Interpretação literal de metáforas - modifica o verdadeiro significado da comunicação.

Exemplo:

P: Não tenho mais corpo. No entanto, ele, às vezes, cresce. Às vezes, fica deformado. Entendeu?

R: Um pouco. Fale mais: gostaria de entender melhor. (acompanhamento empático).

P: Não quero falar. Não quero ir para casa também. Não gosto de lá. Fico perto do meu pai. Tenho que ficar, não tem jeito.

R: Eu penso que não é hora mesmo, de você ir para casa. (acompanhamento empático).

P: Você acha? No primeiro andar fico mais perto do meu pai. Não gosto.

R: Como fica mais perto de seu pai? Ele está aqui? (interpretação literal de uma metáfora. Para o paciente ir para o primeiro andar do hospital significa metaforicamente um retorno diário a sua residência e o consequente encontro com o pai).

P: Esse andar me lembra o tempo em que eu voltava para casa todas as noites e só passava os dias no hospital. (O residente não conhecia a história do paciente e, por isso, não entendeu a metáfora usada, até o momento em que ele explica tentando corrigir a interpretação errônea).

Outro exemplo de transformação de metáfora num significado literal, dando ao discurso do paciente uma signifiado que não existe.

P: Sinto-me como se tivesse perdido a capacidade de sair do chão.

R: Mas você não tem asas...! (literalizando a metáfora).

Observação. As entrevistas, cujos fragmentos foram citados, podem ser lidas, na íntegra, no livro Armadilhas da Comunicação, de Carmita Helena Najjar Abdo.

Transições:como mudar de tópico na entrevista sem desqualificar o paciente

Durante a consulta, o médico precisa mudar de assunto interferindo ativamente no que está sendo dito pelo paciente. Sem os devidos cuidados, poderá desagradá-lo, principalmente se ele estiver falando sobre um assunto que acredita ser importante.

Desaconselho a interrupção brusca por ser uma manobra que conduzirá a deterioração da interação, por violar as regras da comunicação bem-sucedida. Entretanto, pode-se usar as chamadas transições sem contrariar ou desqualificar o paciente. Listo, a seguir, três estratégias práticas de transição para mudar a fala do paciente sem interrompê-lo bruscamente ou desagradá-lo. (CARLAT, 2007).[10] São elas:

Transição suave (criada por SULLIVAN, 1970)[11]

Estratégia: utilizar algo que o paciente está dizendo para introduzir um novo tópico.

Exemplo: Paciente deprimida centraliza o seu relato nos conflitos vividos com o marido e as enteadas. Interessa ao médico obter informações sobre a patologia familiar:

P: John é muito bom para mim, mas não suporto o jeito como as filhas dele esperam que eu me desdobre para facilitar a vida delas. Afinal de contas, elas são adultas.

M: Falando de família, alguém mais da sua família passou por uma depressão como a que você está tendo?

Transição referida (SHEA, 1988)

Estratégia: Fazer referência a alguma coisa que o paciente já disse, para passar a um novo tópico.

Exemplo: Um paciente deprimido mencionou rapidamente que “não sabia se conseguiria continuar suportando aquela situação”. No meio da entrevista o médico precisou avaliar melhor o risco de suicídio:

P: O médico me deu uns remédios por um tempo, mas não adiantou muita coisa.

M: Antes, você mencionou que não sabia se iria conseguir agüentar essa situação. Alguma vez lhe ocorreu que seria melhor está morto?

Transição anunciada

Estratégia: Introduz-se o tópico (ou série de tópicos) antes de abordá-los, com afirmações do tipo: Gostaria agora de falar sobre... Gostaria de fazer algumas perguntas diferentes agora...: O funcionamento é parecido ao de pedir, antes, licença ao paciente para sentar-se em sua cama, fazer uma manobra, aplicar-lhe um procedimento médico, etc.

Exemplo: Agora, eu gostaria de mudar de assunto para lhe fazer algumas perguntas a respeito de... (um sintoma, um comportamento, uma prescrição, um relacionamento, etc.).

Ou, então: Você precisa limitar a avalanche de informações – muitas aparentemente irrelevantes ou sem propósito – proferida por um paciente verborrágico.

Sei que para você é importante tudo o que está me contando; mas sei também que a consulta vai acabar em dez minutos, e eu preciso lhe fazer algumas perguntas que são necessárias para que eu possa lhe ajudar mais. Então, você ainda tem... (olha para o relógio)...um minuto para concluir a sua fala.

Dica prática

Desqualificação por mercantilização da medicina - Transformar o exercício da medicina num balcão de negócios não só desqualifica a interação médico/paciente, mas, seguramente, irá gerar prejuízos técnicos e éticos.

Exemplos clínicos

Um exemplo de interação clínica mal-sucedida: a história do Dr. Rabin

Para ilustrar uma interação mal sucedida vou transcrever pequeno fragmento do relato do Dr. Rabin, endocrinologista com diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica (ELA).

Consulta com o especialista

Buscando um diagnóstico definitivo, o Dr. Rabin procurou um importante especialista. Sobre esta entrevista, ele escreveu: “... fiquei desiludido com sua maneira impessoal de se comunicar com os pacientes. Não demonstrou, em momento nenhum, interesse por mim como pessoa que estava sofrendo. Não me fez nenhuma pergunta sobre meu trabalho. Não me aconselhou nada a respeito do que tinha que fazer ou do que considerava importante psicologicamente, para facilitar o enfrentamento das minhas reações, a fim de me adaptar e responder à doença degenerativa. Ele, como médico experiente da área, mostrou-se atencioso, preocupado, somente no momento em que me apresentou a curva da mortalidade da esclerose amiotrófica” (Rabin & Rabin, 1982, apud Hahn, 1995:245).

Curioso é que, meses depois desse contato decepcionante, o doutor Rabin, leu um artigo desse especialista no qual ele atribuía grande importância ao papel do suporte moral e psicológico no tratamento de pacientes com esclerose lateral amiotrófica. Neste caso, o discurso teórico revelou-se a antítese da prática.

Qualificação/Desqualificação na clínica médica: dois exemplos de entrevista

Exemplo 1. Anamnese diretiva

Identificação: Josevaldo, 18 anos, alfabetizado, solteiro, lavrador, natural e procedente de Itaparica. Informante da história: o paciente com bom grau de informação.

QP: Caroço no pescoço há 02 meses

HMA: o paciente informa que há 02 meses observa "caroços" endurecidos no pescoço, à direita. Há 03 semanas ficaram amolecidos e começou a eliminar liquido de aspecto amarelo, mas sem odor fétido. Foi avaliado por médico em sua cidade e medicado com Voltaren e Amoxacilina sem melhora. Associado aos "caroços" há 02 meses, apresenta febre, de até 38O C, diária, mais freqüente à tarde, que cede aos analgésicos comuns.

AM: Nega alergia a medicamentos ou doenças prévias.

HV: tabagismo desde os 13 anos, cerca de dois cigarros ao dia e nos finais de semana fuma até 10 cigarros ao dia. Etilismo diário, desde os 14 anos, quando trabalha na roça, usando até 01 garrafa de aguardente que divide com os colegas de trabalho. Nega uso de drogas ilícitas.

AF: Pai teve Tuberculose pulmonar há 20 anos. Irmão teve câncer no pescoço e baço e morreu há 03 anos.

HPS: paciente, jovem, coopera com a historia, mas refere estar com medo da doença. Perdeu o irmão há pouco tempo e teme estar com a mesma doença. Pergunta diversas vezes se já sabem o que ele tem e pede para não esconderem o diagnostico. Tem bons amigos em Itaparica, mas sabe que nem todos são de confiança. Seus pais se preocupam com ele, porém não podem deixar a roça e ficam temerosos por sua saúde. Namora uma garota de sua cidade e deseja voltar para revê-la.

IS: Às vezes queixa-se de odinofagia e disfagia a líquidos.

Ao exame físico: Paciente emagrecido, descorado +/++++, anicterico. Tax: 38 C. PA: 100x 70 mmHg PR: 90 pbm rítmico e cheio

Ao exame segmentar, verificados como dados positivos:

Presença de 02 linfonodos na cadeia cervical à direita, de 2 cm de diâmetro, endurecidos, fusionados e móveis, e 01 outro próximo, à direita, amolecido com drenagem espontânea de material purulento. Demais cadeias ganglionares do pescoço sem alterações.

Entrevista (semidiretiva) do mesmo paciente

J = paciente D = médico

J: Bom dia, doutor!

D: Bom dia! Qual o seu problema, Josevaldo?

J: Doutor, o que está me incomodando, são esses caroços no pescoço ---

D: Estou percebendo. Há quanto tempo você tem esses caroços?

J: Eu acho que surgiram há dois meses! Primeiro foram os caroços e, há mais ou menos quinze dias, um deles se rompeu---

D: --- e começou a eliminar esta secreção --- (completando o óbvio para informar que está centrado na fala do paciente).

J: - Pois é, doutor. Fui a um médico que me passou duas medicações, mas não melhorei nada!

A entrevista prossegue, mas a certa altura Josevaldo diz:

J: Doutor, tenho de lhe confessar uma coisa (bastante ansioso) ---

D: --- Diga, Josevaldo!

J: Estou desesperado! --- Meu irmão morreu a três anos por causa de um câncer no pescoço (os olhos começam a lacrimejar) --- será que eu tenho a mesma coisa?

D: Você está me dizendo que acredita ter a mesma doença de seu irmão e que terá o mesmo fim? (paráfrase com acompanhamento empático).

J: Bem, talvez, --- a mesma doença, não --- Agora que o senhor falou, percebo algumas diferenças --- (a paráfrase anterior propicia a reflexão do paciente).

D: Por exemplo --- (estímulo para continuar).

J: Ele não tinha febre, não tossia e nenhum caroço de seu pescoço se rompeu... (é o paciente começando a reorganizar o próprio pensamento).

D: Sim! --- (acompanhamento empático, significa, continuo lhe escutando).

J: - Mas ainda que não seja câncer, pode ser uma doença fatal ---

D: - Pode, mas não é! --- (intervenção ativa perfeitamente embasada pelo conhecimento do médico).

J: - Como assim? (interessado).

D: - Você tem uma doença que tem tratamento! (reafirmando mais explicitamente).

J: - Doutor, peço pelo amor de Deus, não me esconda nada --- quero que me diga a verdade--- (menos inseguro, querendo saber da verdade).

D: - Meu caro Josevaldo, você quer saber qual a sua doença? (paráfrase).

J:---É a coisa que mais quero, doutor!

D: - Pois bem. Você tem uma doença tratável, produzida por um micróbio chamado bacilo de Koch --- (o médico comunica a primeira informação direta, ao perceber através da leitura do verbal, paraverbal e averbal do paciente que ele se encontra em condições de recebê-la).

J: - O quê? O senhor está dizendo que eu tenho tuberculose --- (mostrando que sabe sobre o bacilo de Koch).

D: - Exatamente, uma doença infecciosa perfeitamente curável! (sabe que o paciente está em condições de assimilar o conteúdo, pelo que percebeu dos dados obtidos do acompanhamento empático).

J: - Bem --- meu pai teve tuberculose e não morreu! (reflexão lógica, expressa através de uma voz mais tranquila)

D: - Você está me dizendo que seu pai teve uma doença igual a sua e sobreviveu? (paráfrase e acompanhamento empático).

J: - Foi, sim, doutor. Ele teve tuberculose e ficou bom. Mais foi há muito tempo! E se naquele tempo ---- quando as coisas eram mais difíceis --- ele conseguiu se curar, hoje, deve ser muito mais fácil!--- (a paráfrase anterior, propiciou uma nova reorganização das idéias do paciente. Ele próprio, está se autoconvencendo. O médico apenas acompanha e facilita).

D: - Parece, você está começando a aceitar que a tuberculose pode ser tratada e curada! (mais uma paráfrase a validar o raciocínio do paciente. O médico continua perseguindo o objetivo de fazer o paciente entender, por si, que a sua doença não é câncer).

J: - Se é tuberculose, é claro que pode ser curada, não é mesmo doutor? (ainda inseguro, buscando uma confirmação mais explícita).

D: - Sim, meu caro Josevaldo! (chega o momento de mais uma confirmação explicita do médico complementando a fala do paciente).

J: - Obrigado, doutor! O senhor me tirou um grande peso dos ombros! E agora, qual será o próximo passo? (voz esperançosa, já pensando no futuro; a frase sugere que já superou a idéia de ser portador de câncer).

D: - A parte mais fácil! Primeiro vou mandar fazer um curativo em seu pescoço; depois pedirei alguns exames e lhe receitarei antibióticos que, junto com alguns cuidados especiais, deverão curar a sua tuberculose! (acompanhamento empático para dar continuidade a noções tranquilizadoras sobre o porvir).

Comentários

O exame clínico tradicional (Identificação, queixa principal, história médica atual, antecedentes, história social e personalidade, interrogatório sistemático, exame físico) está completo. A narrativa da entrevista mostra uma interação médico-paciente harmoniosa, na qual o médico acompanha empaticamente o diálogo centrado no que o paciente diz, faz e sente. É um exemplo de uma interação clinica bem-sucedida.

Exemplo 2 Anamnese diretiva

Identificação: Carlos, sexo masculino, 52 anos, professor, natural e procedente de Salvador, casado, católico.

Informante: o paciente com bom grau de informação.

QP: Tosse e escarro com sangue há +/- 04 semanas.

HMA: Paciente refere que há 04 semanas vem apresentando tosse produtiva, com expectoração purulenta e que há 02 semanas começou a apresentar escarros hemáticos junto com a expectoração. Refere febre e hoje teve expectoração sanguinolenta de cerca de 50ml. Além destes sintomas, vem perdendo peso nos últimos dois meses (cerca de 5 kg). Fala que sempre teve uma tosse com pigarro que considerava normal, mas que vem piorando nas últimas semanas. Informa também que está com o "fôlego mais curto", não aguentando subir a escada da casa sem se sentir cansado e isto vem piorando progressivamente.

AM: Nega hipertensão, diabetes ou alergias medicamentosas. Nega asma na infância.

HV: Tabagismo de 02 cart/dia desde os 16 anos. Nega etilismo. Refere refeições balanceadas, mas não tem atividade física regular.

AF: Nega história de HAS ou DM na família. Pai falecido de câncer de estômago. Mãe viva, com saúde aparente.

HPS: Refere estar muito preocupado com estes sintomas e "teme pelo pior". Diz estar muito estressado ultimamente no trabalho. Também está se separando da esposa após 22 anos de casamento. Tem dois filhos, mas não se sente muito próximo deles. Sente-se só. (a solidão é um fator de risco para a depressão).

Ao exame físico: Paciente lúcido e orientado no tempo e no espaço, com idade aparente compatível com a referida, emagrecido, febril, com mucosas descoradas +/4+ e anictéricas. Dispnéico ao falar. TA: 120/70mmHg; Peso: 65 Kg Altura: 175 cm

FC: 88 bpm, FR:28 rmp, T:38ºC. Baqueteamento digital.

Ao exame segmentar, verificados como dados positivos:

AR: Tórax em barril, com tiragem intercostal e expansibilidade diminuída em 1/3 médio de HTD, bem como submacicez à palpação e presença de crépitos no mesmo local.

Entrevista (semidiretiva?!) do mesmo paciente

P: - Além de me sentir só Doutor, eu estou perdendo a vontade para tudo. É tristeza todo dia, todos os dias! Não suporto mais esta situação. (Declaração típica de um indivíduo sofrendo de depressão).

M:- Desde quando o Sr. está se sentindo deste modo? (acompanhamento empático).

P: - Éééé...... (paciente desvia o olhar do médico, fica em silêncio, dando a impressão de distanciamento).

M: - O senhor poderia me falar mais do que está sentindo? (insistindo no mesmo tema, mas sem atentar para as mensagens averbais do paciente).

P: - Eu não durmo bem; sinto cansaço, mas não consigo pegar no sono. Até uns meses atrás ficava fazendo alguma coisa no computador, navegando na internet ou vendo televisão. A minha mulher andava reclamando, reclamando até que um dia foi visitar um filho casado e não mais voltou. Falou que quando ficou longe de mim sentiu que a vida comigo estava sendo um peso insuportável, de como era difícil viver comigo, conviver com a minha falta de ânimo, minhas visões sempre negativas para tudo. Disse ainda que o pior de tudo era quando acertava algum jantar com pessoas conhecidas: parecia que eu fazia questão de transmitir uma imagem de fracassado. (pode-se identificar uma sequência de estressores sociais vários).

Agora vivo neste estado de agonia que estou lhe falando, e nem consigo mais ficar em frente ao computador ou televisão. (perda das apetências, sintoma comum na depressão).

Em muitos momentos, penso que seria melhor morrer, pois assim tudo se resolvia. (idéia de suicídio?). Mas sei que no fundo não é bom pensar assim; sou católico e devo ter fé em Deus, devo pensar que quero ficar bom. E aí, então, penso: ficando bom, que farei de minha vida? Está tudo ruim. É muita coisa na cabeça... Sei lá.. se eu estiver com alguma doença grave, posso não me esforçar para me curar e aí posso morrer sem cometer pecado... sei não... não vejo luz no fim do túnel... fico me sentindo culpado, arrependido por meus pensamentos. (cadeia de sintomas absolutamente compatível com um grave quadro de depressão).

Fico pensando se esta doença não é um castigo pelo que deixei de fazer pela minha família, pela minha mulher. Mas também teve coisas na minha vida que nada fiz para merecer. (auto-acusações reforçando o diagnóstico de depressão).

Eu sempre fui uma pessoa triste e só. Pois minha mãe não tinha tempo e meu pai só trabalhava. Não tive carinho, amigos, sempre fui uma pessoa só. O pior, é que me acostumei a isso, tanto que também não dei nada a meus filhos. E minha mulher me deixou por isso. Sempre reclamou da falta de carinho, de companhia. Não vislumbro nada de bom. (outra vez, auto-acusações, agora justificadas por sua infância infeliz).

Pois é, trabalho o dia todo e quando chego a casa não tem nada de bom. Nada, nada mesmo. (perda das apetências, nada lhe trás prazer).

Pense bem doutor, pense bem (fala em tom enfático, tentando atrair o médico para o diálogo): como o Senhor se sentiria trabalhando aqui o dia todo, só atendendo gente com problemas e quando chegasse em casa não tivesse nada que lhe desse prazer? (outra vez, tenta envolver o médico na discussão).

M. - É... entendo... (desqualifica o paciente ao interromper bruscamente a sua fala)... Mas agora o Senhor tem que fazer os exames e só depois dos resultados é que vamos estabelecer o seu tratamento (a intervenção do médico é expressa em tom neutro, ritmo rápido e monocórdico; desvia o olhar do paciente, escreve rapidamente as requisições de exame e as entrega).

P. - E qual é o meu diagnóstico, doutor?

M: - Você fará os exames e quando receber os resultados telefone para minha secretária para marcar uma consulta de revisão. Combinado? (sem responder à pergunta do paciente, o mantém a distância de modo formal).

Comentários

Certamente, esse não é um exemplo de interação médico-paciente bem-sucedido. A comunicação médico/paciente é dialógica (duas pessoas) exigindo a participação ativa e recíproca dos interlocutores. É como um jogo de tênis. Sem parceiro não há jogo. No exemplo, o médico simplesmente não participou. Resultado, sem interlocutor para dialogar o paciente ficou a falar com os móveis e as paredes do consultório. preenchendo o espaço do discurso (mais do que suficiente) com seu monólogo solitário, enquanto o médico, centrado em si mesmo, manteve-se ausente da conversa, do início ao fim da consulta. (Aprende-se aqui, é necessário propiciar o espaço para a fala do paciente, mas não é suficiente se falta a contraparte interativa do médico).

A anamnese diretiva< centrada na doença física, não foi suficiente para apreender o todo da doença, principalmente a depressão explícita e o risco de suicídio – naquele momento o evento patológico mais preocupante. Faltou ainda a contrapartida semi-diretiva do médico para compreender o doente e torna-se capaz de ajudá-lo.

Em nenhum momento, o médico, centrado em si mesmo (e não no paciente), adotou a estratégia de escutar interessadamente o discurso do enfermo. Restringiu-se somente a exercitar o vínculo assimétrico papel-papel (eu sou o médico e você o paciente), sem demonstrar qualquer disposição para catalisar o ordenamento e a reestruturação dos pensamentos e dos sentimentos do paciente, prestando atenção somente aos sintomas somáticos da doença, sem escutar o doente, de forma inteligente, na sua integralidade.

Tal conduta é ineficaz porque empobrece o ato médico, no momento histórico em que o desafio é trabalhar a totalidade somática, mental, social e pessoal do paciente articulados a seus contextos vitais. Só assim, o profissional médico entenderá que o ser humano é muito mais do que "um saco de ossos, um tapete de pele ou um coquetel de hormônios". A propósito, uma semana depois dessa entrevista o paciente cometeu o suicídio.

Carências afetivas

Esses relatos demonstram que os efeitos benéficos das tecnologias dificilmente irão preencher as carências afetivas - necessidade de toque, do desabafo e tantos outros aspectos relacionados ao contato humano valorizados pelo sujeito enfermo. [4]

JASPERS enfatiza a necessidade de o médico recuperar os elementos subjetivos da comunicação com o seu paciente, “assumidos impropriamente pela psicanálise e esquecidos pela medicina” [5], medicina que se deixou seduzir pelo sucesso da tecnomedicina e da busca da objetividade dos dados, abandonando a tarefa basilar de construir uma vinculação afetiva com o paciente, domínio que nenhuma máquina pode (ainda) fazer. Significa, por mais que se queira ignorar a influência dos afetos, ela sempre estará presente na interação médico/paciente nas formas de perceber, de sentir, de pensar e de agir.

Dica prática

O poder de comunicação da linguagem averbal - Mudanças musculares visíveis em todas as partes do corpo costumam “revelar pensamentos e sentimentos, de tal forma, que cada postura criada no corpo tridimensional corresponde a um tipo do pensar e do sentir humanos” [6] revelando afeição, aversão, empatia, antipatia, medo, insegurança, compaixão, erotismo, transferência, contratransferência, etc.

Anamnese “engessada”

Concordo com Perestrello, quando diz que não se pode conceituar a interação médico paciente – campo de diálogo que é também campo de diagnóstico e, principalmente, campo de terapêutica – resumindo-a a obediência às regras de conduta estereotipada da anamnese clínica, onde as perguntas do médico são geralmente breves, truncadas porque ele é obrigado a seguir uma agenda preestabelecida, marcando itens apropriados em um questionário ou formulário. Trata-se, evidentemente, de uma visão simplista.

A interação médico-paciente estereotipada (prefiro dizer, “engessada” por perguntas e respostas padronizadas), pode, paradoxalmente, eliminar a própria interação por obstruir o discurso do paciente. E nem mesmo o médico tem um discurso próprio explícito porque as perguntas padronizadas não lhes pertence e sim a autores cujas identidades se perderam no tempo.

Postura assimétrica

Durante a consulta “engessada” o médico procura ficar no controle da interação – assumindo a postura assimétrica do médico-sábio interagindo com o paciente-ignorante - para conseguir informações que lhe interessam, mas nem sempre interessam ao paciente, configurando assim a chamada “relação” médico-paciente no qual o médico é o agente ativo e o paciente o agente passivo.

Com tal postura, o médico parece ignorar que o paciente também pensa a consulta como uma oportunidade especial para falar não somente de sua doença, mas de seus sonhos, dúvidas, esperanças e desesperanças. Este desencontro de objetivos pode causar ansiedade, conflito, frustração e levar a mal entendidos e insatisfações que só podem ser corrigidos se o doente deixar de ser tratado somente como uma máquina de fornecer informações, propiciando, assim, o caminho para a catarse, a concordância (antiga adesão) com o tratamento e o sucesso terapêutico.

Dica prática -

Percursos patológicos crônicos: os efeitos do estresse/distresse prolongados: mesmo que o doente não tenha enfrentado uma situação extrema na vida, as pequenas e repetitivas tragédias do dia a dia, rotina que parece não ter fim, podem produzir sofrimentos crônicos capazes de levá-lo a adoecer gravemente.

Comentando o par estresse/distresse

Nuno Sousa interessa-se pelos efeitos do estresse no Sistema Nervoso Central há já algum tempo e considera que a exposição a estresse/distresse prolongados são fatores precipitantes para alguns quadros demenciais e depressivos/ansiosos, além de influenciar na resposta imunológica e no metabolismo... a caracterização dos efeitos dos estresse/distresse no SNC e outros sistemas de nosso organismo, podem revelar-se cruciais para o desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas benéficas e duradouras”.[7]

A correlação entre doença e contextos de significados

Sabemos, as doenças não surgem do nada. Elas costumam emergir em contextos carregados de significados próprios de cada pessoa. E tais significados vividos afetam profundamente a saúde. As experiências negativas do mundo costumam produzir doenças, atuando simultaneamente sobre o nosso somático, o nosso mental, o nosso social e o nosso pessoal.

Por conseguinte, não existe a patologia unicamente somática; existe sim a grande patologia dos seres vivos que surge, se organiza e se mantém devido as agressões danosas às quatro interfaces vitais, todas atingidas a um só tempo, umas com mais outras com menos gravidade .

Entretanto, a grande patologia não deve ser confundida com a noção vaga de distresse – conceito de agente patológico único e axiomático que pode ser usado para explicar quase tudo e qualquer coisa. Raiva, luto, divórcio, casamento, traições, depressão, hipertensão, infarto, câncer e congêneres... Tudo é culpa do distresse!

Ele funciona como uma espécie de atalho que exime o médico da obrigação de escutar a história de vida de seu paciente. Assim, explica-se qualquer patologia invocando as palavras mágicas estresse/distresse. E se elas explicam tudo, nada mais precisa ser investigado.

Infelizmente, quando entendido desta forma, nada mais precisa ser aprofundado porque elas costumam substituir a investigação da riqueza de uma história individual, desobrigando o médico da tarefa de conhecer melhor o seu paciente e de melhor explicar a doença.

Isto conduz à repetição de diagnósticos e prescrições, dos tipos: “A culpa é do estresse... você está muito estressado... assim que passar vai melhorar... por isso, relaxe, divirta-se, viaje, tire férias...

Na verdade, as situações estressantes/distressantes, e os infarto do miocárdio, lúpus, diabetes, a asma brônquica e câncer são patologias interdependentes que se correlacionam umas com as outras porque possuem determinantes subjetivos que precisam ser diagnosticados, avaliados e tratados pelo médico – mas somente por aquele médico que objetiva ultrapassar o insuficiente tratamento sintomático para investir na promoção da saúde integral de seu paciente, interferindo no ciclo vicioso da doença e ajudando, inclusive, a melhorar a sua qualidade de vida.

Dica prática

As entrevistas clínicas padronizadas (prefiro dizer, “engessadas”) produzem histórias clínicas impecáveis sobre a doença, mas são iatropatogênicas porque eliminam o discurso de quem sofre e está ávido para falar de seus sofrimentos invalidando, desconfirmando e desqualificando o doente.

Entraves na adoção de um novo modelo conceitual

A aceitação de um novo modelo conceitual implica na implementação de novas abordagens e novos procedimentos que podem se configurar como ameaçadores para o médico. Surgem questões como: Quais os riscos de se praticar uma abordagem diferente? Os envolvidos (médico – paciente - sociedade) ficarão satisfeitos? A rotina do atendimento ficará mais lenta? O médico é capaz de lidar com os sentimentos do paciente? (STEWART, 2010) Algumas respostas serão transcritas do livro Medicina centrada na pessoa:

Achamos que os benefícios superam os riscos potenciais... pesquisas mostraram que as consultas centradas na pessoa estão associadas a vantagens... menos reclamação por negligência médica (Hickson et at AL., 1994); maior satisfação do médico (Roter et AL., 1997); maior satisfação dos doentes (Dietrich e Marton, 1982;Hall e D’ornan, 1988ª, b. Linner AL., 1982; Stewart et AL., 1999); redução das preocupações (Bess et AL., 1986;;Headache Study Group, 1986;Henbest Fehrsen, 1992; Henbest e Stewart, 1990); melhor autoavaliação de saúde (Stewart et AL., 2000); e melhores condições fisiológicas (Greenfield et AL., 1988; Kaplan ET AL.,1989b.);... As pesquisas também indicam que as consultas que seguem o modelo não demoram mais que as convencionais (Greenfield et AL.,1988; Henbest e Fehrsen, 1992; Marvel et AL., 1998). Na verdade, elas melhoram a interação entre a pessoa atendida e o médico por meio de uma profunda investigação da experiência individual da doença (Arborelius e Bremberg, 1992; Howie et AL,. 1991; Marvwel et AL., 1998) e fornecem oportunidade para que se estabeleça uma base em comum...”[12] ...“Talvez, se o objetivo da medicina for o diagnóstico e o tratamento da doença, a qualidade da comunicação entre o médico e o paciente faz pouca diferença, conquanto se obtenha um histórico médico adequado e a necessária cooperação do paciente, para fazer ou deixar de fazer certas coisas. Mas se o objetivo da medicina for interpretado mais amplamente, se a preocupação for com a pessoa que está doente, e o objetivo o de aliviar, reassegurar e restaurar o paciente, como parece que deve ser, então a qualidade da comunicação assume uma importância instrumental e tudo o que interferir com ela precisa ser observado, e se possível, removido..” (SAMORA, 1961) [13]

Finalizando

Diante desses saberes, evidências e constatações só nos resta cerrar fileiras em prol da abordagem multiaxial – mental, somática, social e pessoal articulada ao contexto vital – prevenindo a iatropatogenia com técnicas, táticas e estratégias comunicacionais e encarando as novas atitudes e os novos procedimentos como um desafio a ser superado, sempre em benefício da saúde e da melhor qualidade de vida de nossos pacientes e, por consequência, de nossa satisfação e de nosso crescimento profissional.

Notas:

[1] Professor Adjunto da EBMSP, cursos de Psiquiatria e Semiologia Mental.

[2] http://www.rsbcancer.com.br/rsbc/8mperspectiva.asp?nrev=N%C2%BA%C2%A08COMUNICAÇÃO IATROGENIA NA CANCEROLOGIA Dr. Antônio André Magoulas Perdicaris.

[3] ROGERS, Carl, Tornar-se pessoa, Ed. Martins Fontes, Santos, SP, 1972.

[4] Comunicando-se com o paciente terminal Mônica Martins Trovo de Araújo, Maria Júlia Paes da Silva, RSBC , São Paulo, Sábado, 17/10/2009 , Revista Nº 23 Página,http://www.rsbcancer.com.br/rsbc/23_Pag_comunicando.asp?nrev=Nº 23&Pag=

[5] JASPERS, Karl, Psicopatologia Geral, volume I, Ed. Atheneu, 2ª. Edição, RJ e SP, 1979.

[6] FONSECA, Albenísio, Para ver Rodin, além do modelado, A Tarde, pág. A2, 23.11.2009.

[7] SOUZA Nuno, 2010, DIRETOR DA Escola de Medicina de Minho, Portugal

[8] ABDO, Carmita Helena Najjar, Armadilha da comunicação, o médico, o paciente, o diálogo. SP, Lemos Editorial, SP, 1996.

[9] QUEIROZ, José Pinto de, Comunicando com o paciente.

[10] CARLAT, Daniel, Entrevista Psiquiátrica, 2º. Edição, Artmed, Porto Alegre, 2007.

[11] SULLIVAN, Harry Stack, A entrevista psiquiátrica, Interciência, RJ, 1983.

[12] STEWART et AL., Medicina centrada na pessoa. Transformando o método clinico, Artmed, 2ª. Edição, SP, 2010.

[13]http://encipecom.metodista.br/mediawiki/index.php/An%C3%A1lise_do_discurso_e_intera%C3%A7%C3%A3o_m%C3%A9dico/paciente:_perspectivas_em_conflito

LEITURAS ALTAMENTE RECOMENDADAS:

BIRD, Brian, Conversando com o paciente, Livraria Manole, São Paulo, 1975.

LEADER, Darian, CORFIELD, David, Por que as pessoas ficam doentes, Best Seller, RJ, 2009.

CURY, Alexandre Faisal e VOLICH, Rubens Marcelo, Segredos de Mulher, diálogos entre um ginecologista e um psicanalista, Atheneu, SP, 2010.

STEWART, Moira et AL., Medicina centrada na pessoa, artmed, Porto Alegre, 2010.

SANTOS, Franklin Santana et al, Cuidados Paliativos, discutindo a vida, a morte e o morrer, Atheneu, Porto Alegre, 2010,

quarta-feira, 27 de julho de 2011

COMUNICANDO COM O PACIENTE - ATUALIZAÇÃO

COMUNICANDO COM O PACIENTE

José Pinto de Queiroz Filho[1]

Medicina e Comunicação

Acumulam-se evidências (RUESCH, 1951, ENTRALGO, 1961, PERESTRELLO, 1962, LAING, 1964, BALINT, 1966, SULLIVAN, 1974, BATESON, WATZLAWICK, JACKSON, 1981, BIRMAN, 1986, QUEIROZ, 1991, ABDO, 1996) de que o médico precisa ser hábil em comunicação para construir uma interação clínica bem-sucedida, estratégia primeira do exercício da Medicina, porque se ela não se efetiva ficam prejudicados os demais passos que a sucedem, de diagnóstico, de prognóstico e de terapia. Comunicar significa partilhar, por em comum, interagir.

Interação médico-paciente

Ao contrário do que se pensa não se deve falar de relação médico paciente, mas sim de interação médico paciente. Explico:

De acordo com o Dicionário Aurélio “Interagir é uma ação que se exerce mutuamente entre duas ou mais coisas, ou duas ou mais pessoas; ação recíproca”.

Na consulta clínica, a interação ocorre entre o médico e o paciente, dois agentes ativos que se ajudam reciprocamente para atingir, juntos, o objetivo comum de promover a saúde do segundo. Situação que não fica claramente explicitada na palavra “relação” que se refere a ação de um sujeito dominante intervindo sobre um outro dominado.

Para Sartre (citado por BIRMAN, 1980) a interação do médico com o seu paciente é evento singular com características diversas de qualquer outra interação humana conhecida.

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Dicas práticas

Esteja ciente de que a interação médica precisa ser feita com o máximo de suavidade possível. Procure adentrar a subjetividade do paciente sem lhe criar o sentimento de que está sendo invadido. Esforce-se por ser um profissional do tipo ombro-amigo utilizando o acolhimento (expresso principalmente através da linguagem averbal) para ter acesso à intimidade do paciente.

Lembre-se também que a linguagem verbal pode gerar efeitos positivos, mas somente se o médico for treinado para utilizá-la. Convém evitar palavras, atitudes e entonações vocais que indiquem: agressividade, grosseria, menosprezo, humilhação, afetação, empáfia, arrogância, insolência, pretensão, desfaçatez, imodéstia... a lista é e norme.

Idealmente, médico e paciente devem seguir juntos, ombro a ombro, em busca do objetivo comum de promover a saúde do segundo (prevenindo, preservando, produzindo, reabilitando e recuperando a saúde) e colaborar para lhe propiciar o bem estar e a melhora de sua qualidade de vida utilizando uma estratégia de validação do sujeito em que se preserva o acolhimento do paciente como pessoa plural (de singularidade inimitável e não de uma generalidade comum), através da escuta de seus pequenos atos, pequenos enfrentamentos, pequenas vitórias ou derrotas, dúvidas existenciais, dúvidas imediatas, confronto com o futuro, emergência de impulsos irracionais, da melancolia alimentada pelo vazio, pela solidão, por silêncios e lacunas [2]- livres, médico e paciente, do “engessamento” do discurso dominantemente somático.

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Comunicação e Eficácia Médica

Se for considerada apenas uma técnica eficiente para obter respostas pré-pautadas por um questionário, a entrevista não promoverá a comunicação entre pessoas. Se o diálogo autêntico acontece, estabelece-se a comunicação e entrevistado e entrevistador saem alterados do encontro”. (CREMILDA DE ARAÚJO MEDINA)

Modalidades de Comunicação em Medicina

A Medicina trabalha com a comunicação em suas diversas modalidades:

  1. Comunicação direta, face-a-face, exercida no setting de consulta clínica.
  2. Comunicação em pequenos grupos, nos eventos - aulas, palestras, congressos, debates etc.
  3. Comunicação irradiante, das grandes mídias de massa, mediada por sistemas técnicos de produção em massa (jornais, revistas, TV, literatura de massa, radiodifusão, cinema).
  4. Comunicação espectral, concentrada basicamente nas redes digitais da internet.

Desse todo, interessa-me focar, aqui, os elementos da comunicação direta, pessoa/pessoa, face-a-face, aplicados à interação médico-paciente, no meu entender, o principal instrumento de trabalho do médico.[3]

Comunicar é um instrumento terapêutico

Comunicar-se adequadamente com o enfermo é, per se, um instrumento terapêutico, quase sempre um remédio adequado ou, algumas vezes, o único viável - quando precisamos interagir, por exemplo, com o doente terminal. (Faz-se) “...nítido que a terminalidade lenta tornou o cuidar mais complexo, já que o paciente precisa ser visto não mais como um corpo (físico) em processo de degeneração, mas como um ser completo, que apresenta demandas e necessita de assistência... [5] (nas suas dimensões somato-mental-social-pessoal-contextual).

Uma abordagem a um órgão ou doença específica, para diagnóstico e terapia, frequentemente tem um mau resultado quando o indivíduo (portador) do órgão e da doença é ignorado. Relacionar as queixas e incapacitações do paciente, com sua personalidade e circunstâncias sociais, auxilia a determinar a natureza e causas dessas queixas e incapacitações.

Para avaliar a personalidade do paciente, o médico deve primeiro ouvir atentamente e demonstrar interesse pelo paciente enquanto pessoa. Conduzir a entrevista com frieza e indiferença, com questões fechadas (seguindo um algoritmo rígido de sistema revisado) é mais provável que impeça o paciente de revelar informações relevantes. Traçar a história da doença que se apresenta com questões abertas, que permitam ao paciente contar a história com suas próprias palavras, não toma muito tempo e possibilita a descrição das circunstâncias sociais associadas e a revelação de reações emocionais.” [6]

Resumindo: a exploração somática “engessada”- fragmento de um todo que é o paciente - impede o médico de obter dados pertinentes das interfaces mentais, sociais, pessoais, contextuais, cujos nexos com a enfermidade lhes propiciaria compreender o doente, diagnosticar a doença com mais precisão e instituir a terapêutica mais adequada para cada paciente. Não o fazendo, mantém a ilusão de haver superado a doença com a sua intervenção focada nos sinais e nos sintomas, sem que o paciente fique realmente curado.

Elementos de uma comunicação clínica bem sucedida

Existem poucas investigações a respeito do que significa (para o médico e para o paciente) uma comunicação clínica bem-sucedida. E se não se sabe o que é uma comunicação bem-sucedida, como reconhecer a mal-sucedida? Talvez, o primeiro passo seja o de aprender a identificar os elementos fundamentais de uma interação comunicacional dita normal, habitual, cotidiana.

Para descrever os elementos da comunicação do dia-a-dia, utilizarei como referencial a Teoria Pragmática da Comunicação Humana, do grupo de Palo Alto, Califórnia, EUA, formado por cientistas multiprofissionais que investigaram, à exaustão, o campo da teoria e da prática dos padrões, patologias e paradoxos da interação a partir da perspectiva interpessoal. Como resultado, postularam axiomas conjeturais dos fundamentos da comunicação cotidiana, dos quais abordarei, apenas, os que me parecem mais afinados com a consulta clínica.[17]

O quadro de referência

Os autores ilustram o quadro de referência da teoria, com três relatos. Reconstituirei um:

Um homem desmaia e é levado para um hospital. O médico o examina e observa o estado de inconsciência, a pressão sanguínea extremamente baixa e o quadro clínico que se assemelha ao de intoxicação aguda por álcool ou outra droga. As análises não revelam nenhum vestígio de tais substâncias. O estado do paciente continua inexplicável até que ele desperta e revela ser um engenheiro de minas que acabara de regressar de dois anos de trabalho de uma mina de cobre situada no Andes, a uma altitude de 15.000 pés. Esclarece-se, o estado do paciente não é uma doença no sentido habitual de uma deficiência orgânica (...) mas um problema de adaptação de um organismo sadio a um meio drasticamente alterado. Se o paciente não tivesse despertado e informado sobre o seu trabalho, ampliando, assim, a compreensão das causas de seu desmaio, o médico, centrado em seu organismo e na ecologia do meio habitual, continuaria ignorando a natureza do evento.

Análise do relato

Pergunta-se, o que existe de importante nesse relato? Simplesmente que qualquer fenômeno permanece inexplicável enquanto o âmbito da investigação não for suficientemente amplo para incluir o contexto onde o fenômeno ocorre. Quer dizer, o observador que se depara com algo "misterioso" é porque não investigou e não identificou as relações entre os eventos e seu contexto propiciador.

Na área de saúde, que interessa aqui, os estudiosos da causalidade somática já aceitam a ampliação da explicação com a inclusão das interfaces multiaxiais (somáticas, mentais, sociais, pessoais e contextuais.

Axiomas da comunicação

Para facilitar a construção de uma comunicação bem sucedida é preciso não transgredir os axiomas propostos pela teoria da comunicação pragmática humana destacados a seguir:

A impossibilidade de não comunicar

A premissa é a de que o comportamento não tem o seu oposto; isto é, não existe o não-comportamento; por conseguinte, o indivíduo não pode não se comportar. Numa situação interacional todo o comportamento tem valor de mensagem, isto é, de comunicação. Por isso, por muito que a pessoa se esforce é-lhe impossível não comunicar. Inclusive, a mera ausência da fala não constitui exceção.

O fato de aceitar-se todo comportamento como comunicação, não quer dizer que se esteja lidando com uma unidade, mas com um complexo fluido de numerosos e multifacetados modos de comportamento - verbais, tonais, posturais, contextuais, etc. - que, em seu conjunto, determinam o significado de todos os outros.

Conteúdo e níveis de interação.

Toda comunicação implica um compromisso e define uma interação entre os comunicantes. Significa que uma comunicação não só transmite informação (conteúdo), mas, ao mesmo tempo, impõe um comportamento (interação). No nível de máquina, os engenheiros de comunicação verificaram que um organismo artificial tem de ser programado para se comunicar em dois níveis. Por exemplo, se um computador multiplica dois números terá de ser alimentado com os dois números (conteúdo) e com a instrução (ou ordem) para multiplicá-los. São dois tipos de informação, os dados e as instruções. A segunda é uma meta-informação, quer dizer, informação que qualifica outra informação, por isso, pertence a um tipo lógico superior aos dados.

Em se falando de comunicação humana, se digo "Isto é uma ordem!", e meta-informo, "Não me leve a sério!", forneço um conteúdo e, ao mesmo tempo, informo como deve ser compreendido. Atente, a interação também pode ser expressa averbalmente por um grito, um sorriso, vocalizações e muitos outros meios.

Linguagens verbal, paraverbal (ou paralinguagem)[18] e averbal

A comunicação é a base universal para as pessoas estabelecerem uma interação. A tarefa de facilitar essa comunicação deve abranger todos os recursos disponíveis: a palavra, a escrito, os gestos, as atitudes e o toque (contato físico).

Em se falando da consulta médica, se privilegiarmos a linguagem verbal para dizer: Estou acolhendo você... Estou atento a você... Estou dando segurança a você... Estou tendo empatia por você... Estou sendo compreensivo com você... Estou interessado em ajudá-lo - não convence, nem transmite veracidade ao paciente porque a linguagem verbal (digital) não é muito competente para estabelecer interações afetivas e transmitir os significados afetivos das vivências. E, por não ficar convencido, o interlocutor não valida nem sintoniza com as afirmações. Neste caso, deve-se privilegiar a linguagem averbal (analógica), porque só ela é capaz de “costurar o invisível” dando qualidade e verossimilhança às interações pondo em comum os significados afetivos através de gestos, movimentos, toques, postura, comportamentos, vocalizações.

O toque é, particularmente, um dos procedimentos importantes da comunicação não verbal, porque pode enviar mensagens positivas para o paciente na dependência do momento, da forma e do local onde ocorre (BLANDIS, JACKSON, 1982). É considerado não somente como um meio de comunicação, mas também como uma forma de tratamento. (DELL ACQUA; ARAUJO, SILVA, 1982)

Convém atentar que o termo comunicação não-verbal é equívoco, porque parece indicar que está limitado apenas aos movimentos corporais, o chamado comportamento cinésico.[19] Na verdade, o não-verbal abrange necessariamente postura, gestos, expressão facial, inflexão de voz, seqüência, ritmo, e cadência das palavras e qualquer outra manifestação averbal de que o organismo é capaz, acrescidos das pistas comunicacionais infalivelmente presentes em qualquer contexto em que uma interação ocorra. São eventos que devem ser observados para assegurar a leitura correta do averbal do paciente [20].

Importância do contexto

A interação pode ser mais bem entendida se também for levado em consideração o contexto físico-social onde ela ocorre, por exemplo, num consultório médico, num quartel de exército ou dentro de uma igreja Se uma mulher decide ficar nua numa rua movimentada, em vez de fazê-lo em casa, poderia ser rapidamente conduzida para uma delegacia de polícia ou para um manicômio - um exemplo dos efeitos pragmáticos da comunicação não-verbal.

De forma idêntica, o contexto interpessoal influencia a interação. Sendo assim, as respostas de um aluno podem divergir bastante se ele estiver interagindo com um professor severo, um computador, ou uma loura esplendorosa. Por sinal, é habitual na consulta médica esquecer-se da importância do contexto.

Dica prática. A capacidade de metacomunicar (comunicar sobre a comunicação) é condição essencial de uma interação bem-sucedida, porque qualquer confusão entre comunicação (dados) e metacomunicação (instruções ou relações) pode conduzir a impasses e mal-entendidos, produzindo ruídos na interação.

A pontuação da sequência das mensagens

Se um rato pudesse dizer: "Consegui treinar o meu experimentador. Sempre que aperto este botão ele me dá comida", estaria recusando a imposição da seqüência estabelecida pelo experimentador: "Você aperta o botão e eu lhe dou comida."

A pontuação da comunicação refere-se à ordenação da troca de mensagens entre interlocutores. Um observador externo percebe uma interação entre pessoas como uma seqüência ininterrupta de troca de mensagens. Numa seqüência prolongada - por exemplo, na consulta médica - as pessoas pontuarão a seqüência de modo a ficar manifesto que um ou outro alternam a iniciativa, o conhecimento, o domínio, a dependência, etc., quer dizer, estabelecerão entre eles padrões de permuta, e esses padrões serão, de fato, as regras que conduzirão o diálogo. A pontuação é vital para o sucesso das interações, porque organiza a seqüência da comunicação – o momento de dizer, de escutar, de começar, de terminar.

A discordância sobre como pontuar a seqüência de eventos está na raiz de incontáveis lutas em torno das relações. Por exemplo, um casal com problemas conjugais. O marido pontua a interação retraindo-se passivamente, enquanto a pontuação da esposa consiste em censurar sua passividade. O marido diz que o seu retraimento é a única defesa contra as implicâncias da esposa. Ela classifica tal explicação como uma distorção grosseira e deliberada do que realmente ocorre no casamento. Sua critica é conseqüência da passividade do marido.

Despojados de todos os elementos efêmeros e fortuitos, a briga consiste numa troca repetitiva de mensagens: "Eu me retraio porque você implica." e "Eu implico porque você se retrai". O marido percebe o seu comportamento como simples resposta ao comportamento agressivo da esposa, enquanto ela se vê reagindo tão somente ao comportamento passivo do marido.

Num atendimento individual - que seria um desastre - cada um dos parceiros acusará o outro de estar "distorcendo a realidade", porque não consegue perceber que está vivendo uma experiência conjunta e interdependente que reside na incapacidade de ambos para meta-comunicar sobre a natureza oscilatória e realimentadora da sequência. A alternação de passividade - censura - mais passividade - mais censura pode prosseguir ad infinitum e, habitualmente, se faz acompanhar pelas típicas acusações de maldade ou loucura. Numa observação mais criteriosa pode-se perceber que o conflito surge da pontuação arbitrária da seqüência, notadamente da ilusão de que ele tem um começo (foi ele... foi ela quem começou), e este é precisamente o erro dos parceiros envolvidos nesta "armadilha comunicacional".[21] O mesmo argumento vale para as relações entre nações.

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Dica prática. A interação que se estabelece entre interlocutores é regida e ordenada pela pontuação da seqüência da troca de informações, um dos principais axiomas da comunicação que costuma ser ignorada pelo médico, na sua interação com o paciente, como veremos oportunamente.

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Proxêmica: a distância entre pessoas

Edward Hall criou a palavra "proxêmica", para nomear a ciência que estuda a distância entre as pessoas; ou seja, como os indivíduos constroem distâncias entre eles, durante o processo da comunicação.

DAVIS, (1979) afirma que a noção do eu individual ultrapassa os limites da pele; passeia dentro de uma espécie de bolha particular, representada pela quantidade de ar que se sente existir entre o "eu" e o "outro". A proxêmica estuda esta espécie de "bolha invisível" (COOPER, 1979) que existe ao redor de toda pessoa e é vivida como uma extensão do próprio corpo pessoal, e que indica o quanto nosso eu aguenta a proximidade de outro eu. Sugeriu-se uma classificação do tamanho da bolha, de acordo com a distância interpessoal. HALL, citado por SILVA, propõe:

Distância íntima - do toque a 45 centímetros.

Distância pessoal - de 45 centímetros a 1 metro e 25 centímetros.

Distância social - de 1 metro e 25 centímetros a 3 metros e 60 centímetros.

Distância pública - acima de 3 metros e 60 centímetros.

As dimensões da bolha invisível podem ser avaliadas a partir de dois vieses:

1) da distância entre os interlocutores; quanto maior a distância física, hierárquica, socioeconômica, emocional, etc., mas afastadas ficam as pessoas.

2) da amplitude da bolha, isto é, quanto maior for a capacidade do indivíduo para estender os limites físicos, cognitivos e afetivos de sua bolha, alcançando, ampliando, abrangendo e englobando o íntimo de outra pessoa, maior é a propensão para fazer contato, aceitá-la e compreendê-la.

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Dica prática. Existem, na área de saúde, pelo menos, três formas de invasão do espaço pessoal das pessoas.[22]

Violação: é a invasão com o olhar. Ocorre com relativa freqüência. Por exemplo, uma pessoa está fazendo um curativo na região mamária da paciente quando chega outra e fica olhando sem explicar o que está fazendo ali.

Invasão propriamente dita. Refere-se a invasão do território. Por exemplo, quando sentamos na cama do paciente sem pedir permissão; ou chegamos com a bandeja de medicação e empurramos todas as suas coisas da cabeceira.

Contaminação. É a invasão com 'coisas' nossas. Por exemplo: esquecer o termômetro na axila do paciente.

A invasão do espaço pessoal provoca no indivíduo reações agressivas, paranóides, resistências, recuos, indiferença.

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Imprevistos da comunicação

Parte da comunicação pode ser planejada, mas a outra parte contém imprevistos que só podem ser resolvidos se o médico for capaz de fazer o acompanhamento empático das ações e reações emocionais do paciente no aqui/agora da entrevista mostrando-se, assim, apto para construir uma interação bem-sucedida, o que lhe propiciará comunicar-se de forma mais adequada (interagindo, partilhando, pondo em comum) de acordo com o andamento da consulta, privilegiando os aspectos emocionais da doença. Precisa ser assim, porque a maior dificuldade do doente (e também do médico) é a de lidar com a doença do ponto de vista emocional. O doente melhora, quanto mais entende e aceita emocionalmente a sua condição. [7] Piora, se não aceita e não aprende a lidar com ela.

Para lembrar: a Medicina não é uma ciência biológica pura, mas se fundamenta em conhecimentos biomédicos; não é uma ciência exata, mas respalda suas práticas diagnósticas, prognósticas e terapêuticas nas evidências demonstráveis; e, para complexificar ainda mais, não é uma ciência da comunicação, mas só pode ser exercida em toda sua plenitude se o profissional for capaz de estabelecer uma interação médico/paciente bem-sucedida.

Habilidade inata para comunicar

O argumento é simples. O ser humano sadio nasce competente para se comunicar consigo mesmo (comunicação intrapessoal), com o semelhante (comunicação interpessoal) e com o contexto vital. Por isso, somos, por excelência, enquanto vivos, seres pensantes em permanente comunicação. [8]

São precisamente as modalidades de comunicação intra e interpessoal que propiciam ao indivíduo tomar ciência de si mesmo, adquirir conhecimentos acerca do mundo em que vive, interagir com as outras pessoas e tornar-se agente de transformação da realidade vivida.

Comunicar no sentido de interagir, por em comum, partilhar informações não é um luxo. É tão importante para a sobrevida do ser humano quanto, por exemplo, alimentar-se. Sem comer a pessoa morre. Da mesma forma, não terá como sobreviver se fica impossibilitado de comunicar-se buscando:

  1. Obter informações para aprender a viver no ambiente complexo, competitivo, conturbado em que existe.
  2. Fazer a leitura do que precisa para manter-se vivo (incluindo conviver com os outros)
  3. Utilizar a comunicação para obter tais insumos na sociedade humana.

Como a comunicação age sobre o organismo da pessoa

Um estudo da Universidade de Wisconsin (EUA) descobriu que falar com a mãe por telefone reduz a taxa do hormônio cortisol responsável pelo estresse. Além disso, libera ocitocina que causa a sensação de bem-estar e, acredita-se, ajuda a formar laços afetivos. Convém atentar, isto vale para todas as formas de comunicação - verbal, paraverbal, averbal e ritual em qualquer contexto dado.

Por que isto acontece? Porque somos criaturas terrestres capazes de mudar nosso soma com o que percebemos, pensamos, sentimos e fazemos. Nossas células estão constantemente bisbilhotando nossos pensamentos e sendo modificadas por eles. Em outras palavras, estão constantemente processando as experiências e metabolizando-as de acordo com as nossas vivencias subjetivas. É por isto, que um surto de depressão pode arrasar o sistema imunológico; e apaixonar-se, ao contrário, pode otimizá-lo; a alegria e a realização nos mantêm saudáveis e prolongam a vida, enquanto a recordação de uma situação estressante, mesmo que não seja mais que um fio de pensamento, libera o mesmo fluxo de hormônios destrutivos que o estresse (cortisol). Quem está deprimido por causa da perda de um emprego projeta tristeza por todo o corpo – a produção de neurotransmissores por parte do cérebro reduz o nível de hormônios, interrompe o ciclo do sono, distorce os receptores neuropeptídicos das células da pele, tornam as plaquetas sanguíneas mais viscosas e mais propensas a formar trombos; e até as lágrimas adquirem traços químicos diferentes das lagrimas de alegria. Todo este pool neural-bioquímico mudará drasticamente na medida em que a pessoa consiga internalizar vivencias reparadoras. Isto reforça a necessidade do uso da interação clínica para propiciar ao médico, com a ajuda de seu paciente, construir um novo pool neurao-bioquímico competente para promover a sua saúde... [15]

Binômio ver- ouvir em Medicina

Vejo o objeto; ouço o sujeito. O binômio ver/ouvir permite que o médico veja e ouça os sinais e os sintomas situados nas dimensões de tempo e de espaço que constituem o campo de ação da consulta médica.

O visível configura um mundo de três dimensões presentes na experiência imediata do aqui e do agora estabelecendo, assim, a dimensão espaço. Incluo entre os fenômenos visíveis tanto um tumor palpável quanto as expressões averbais, dos tipos: lágrimas -, que podem reforçar os vínculos sociais e comunicar sentimentos -, sorriso, choro, rubor facial, crispar dos punhos, agitação, alucinação, etc. Todos podem ser “lidos” e decodificados pela visão. Até mesmo o relato verbal do paciente, para ser ratificado, precisa ser confrontado com a leitura visual da linguagem averbal.

Lidar com a interação médico/paciente implica em estabelecer vínculos com um ser polissêmico (de múltiplos significados) que tem quatro interfaces: mental, social, pessoal, portando um corpo físico e atuando dentro de um contexto vital. Por isso, a explicação somática, por mais que seja correta, clara, objetiva, óbvia e repleta de evidências incontestáveis não consegue, isoladamente, abranger o todo do adoecer humano. Há sempre múltiplos fatores envolvidos, incluindo o próprio contexto vital onde o paciente está inserido.

A interação pode ser exercitada através da observação dos fenômenos visíveis e audíveis. No meu entender, ver e ouvir são processos complementares que fazem parte dos fundamentos para o exercício da profissão médica - um médico cego ou surdo terá dificuldades para construir uma interação clínica bem sucedida. Sendo assim, o ver e o ouvir servem para explicar/compreender tanto o doente quanto a doença.

Interação médico paciente – a dimensão histórica

Costuma-se afirmar, e concordo com a afirmação, só se pode falar em interação médico-paciente bem-sucedida, quando nela se introduz a dimensão histórica. No dizer de Perestrello, a Medicina da Pessoa insere a enfermidade no contexto histórico do paciente.[9] Graças a escuta do médico, o doente se coloca como uma pessoa singular, à medida em que fala de sua biografia e de seu destino.

Entretanto, discordo de outra afirmativa: a de que sem a fala o paciente fica impossibilitado de partilhar a sua biografia com o médico.[10] A falta do discurso verbal pode dificultar, mas não impossibilita o relato da autobiografia. Acontece porque o processo humano de comunicar não se limita à fala; a comunicação também se faz por meio da expressão do rosto, do tipo de vestuário, das posturas, atitudes, sinais corporais, faciais e paralinguísticos e do próprio contexto vital do paciente. (SILVA, MÔNICA, JULIA, ARAÚJO, 2009).

Interação médico paciente – a dimensão temporal

O visual e o audível também introduzem na patologia, a dimensão temporal. Por conseguinte, através da captação de relatos verbal e averbal - audível e visual -, pode-se obter a sequência longitudinal de sua historia de vida, contada por ele próprio, permitindo ao médico identificá-lo como uma pessoa que tem uma biografia impar – a exigir uma semiologia, um diagnóstico e uma terapêutica específicos para este indivíduo.

Outros aspectos que alicerçam a construção de uma interação clínica temporal bem sucedida são: atendimento sem atrasos, disponibilidade para atender em situações de emergência.

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Dica prática

"Assumindo uma atitude profissional caracterizada por um acolhimento franco, o médico poderá aplacar a ansiedade e estimular o paciente para que compartilhe todos os aspectos de seus antecedentes pessoais dentro da história clínica. Qualquer que seja a atitude do doente, o médico deve situá-lo dentro do contexto em que se produziu a enfermidade, quer dizer, não vê-lo isolado, mas, sim, considerá-lo parte de um todo familiar, social e cultural. A interação médico-paciente ideal se apóia no conhecimento minucioso da pessoa, confiança mútua, e a capacidade de comunicação fluida e direta". [11]

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A doença é sempre pessoal

A doença afeta cada pessoa de forma única. O corpo e a mente de cada um de nós reagem de maneiras distintas das de outra pessoa. Por isso, quando lidamos com pessoas, não há como separar eventos mentais, somáticos, interpessoais, pessoais e contextuais porque o adoecer afeta o indivíduo como um todo. O próprio efeito terapêutico das drogas, por exemplo, não depende exclusivamente dos fatores farmacodinâmicos, mas também de como o paciente se sente tranquilo ou ansioso para aderir (concordar) ou rejeitar um tratamento. [4] Sendo assim, qual a melhor conduta? Tratar apenas a doença (frequentemente, de forma sintomática) ou promover a saúde integral do paciente como um todo?

Além do somático

Mudamos o nosso corpo com as nossas percepções os nossos pensamentos, os nossos sentimentos e as nossas ações. As pessoas agem menos pelos fatos e mais pelo que percebem, sentem e interpretam sobre os fatos. As evidências de que a evolução da doença e a resposta terapêutica dependem de como o paciente percebe, sente, pensa e faz dentro do contexto onde se encontra inserido, convenceram o médico de que é preciso adquirir a habilidade para investigar e intervir além do somático de seu paciente.

Entenda-se além do somático a investigação semiológica abrangente do perceber, do sentir e do pensar do paciente dentro de seu contexto vital atuando sobre e modificando o corpo físico.

De outra parte, a eficiência do ato médico depende do tipo de interação que o profissional constrói com o paciente, capaz de influenciar os sistemas neuro- endócrino- humoral com repercussões no corpo e na mente.

Considerando que é a comunicação quem propicia a construção desta interação, ser especialista em cuidar do ser humano implica em tornar-se exímio na habilidade de comunicar. É preciso que os médicos aprendam a "ouvir" o paciente (e não a silenciá-lo) e, nesse sentido, condena-se a anamnese somática exclusiva.[12]

Catarse: a importância terapêutica de relatar ao outro os próprios problemas

O ser humano é processador (mental inato):...Falar e escrever são os exemplos mais óbvios de como compreendemos os eventos de nossa vida. Mas o que acontece quando esses modos de comunicação não estão disponíveis? É possível que, em alguns casos, uma enfermidade física tome seu lugar?” [13]

Por que o isolamento social de uma pessoa é tão prejudicial à sua saúde quanto o tabagismo, a obesidade e o sedentarismo? Talvez pela falta de um interlocutor que propicie ao solitário social partilhar os seus problemas vitais. O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao portador de asma brônquica, que melhora a sua capacidade pulmonar (medida com o espirômetro) depois de relatar para alguém suas experiências problemáticas de vida. (LEADER e CORFIELD, 2009)

Rogério Menezes, escritor baiano, costuma repetir Jorge Amado: “Escrever” – e acrescentamos, ou qualquer outra forma de comunicação com o outro – “é sempre terapêutico”. E complementa: “Você escreve para não enlouquecer”. Na verdade, não vale somente o desabafo em si, mas o desabafo partilhado com o outro. A regra poderia ser: “Ou você abre o seu coração ou o cirurgião cardíaco o fará por você”.

O fato é que não é a preocupação que nos faz adoecer, mas, sim, como interpretamos mentalmente esta preocupação.

Comunicando-se com o doente

Estar sadio inclui a habilidade para comunicar. Na pessoa enferma ela está quase sempre prejudicada. É por isso que a interação com o paciente exige uma abordagem especial do médico, pois ele terá de se comunicar, a um só tempo, com o doente, com a doença e com ele próprio (médico).

É importante estar ciente que o ser humano, qualquer que seja o tema que esteja desenvolvendo, sempre vai estar se comunicando acerca de si mesmo, acerca dos outros (ausentes) e acerca do contexto imediato da comunicação -, no caso a consulta clínica.

O quê fazer.

No início da entrevista faça o acolhimento (em tese, o mínimo de dez minutos), evitando intervenções diretivas que procuram, de alguma forma, conduzir o paciente, minimizando a sua autonomia. Utilize a abordagem semidiretiva que tenta acompanhar o seu relato dando-lhe a oportunidade de refletir ativamente sobre o próprio conteúdo ajudando-o, assim, a auto-estruturar e auto-organizar as suas cognições, emoções e o seu campo perceptivo. Na verdade, esta reorganização da experiência só pode ser feita por aquele que a está vivendo – isto é, o próprio paciente. Sendo assim, "Cabe ao paciente (...) apresentar o caminho e nós acompanhá-lo em sua trajetória, reta ou sinuosa, em direção às experiências promotoras de saúde".

Adoecer

O adoecer tem uma história natural e uma história pessoal. A patologia pode ser encontrada tanto na estrutura somática do sujeito quanto na sua biografia - eventos mentais, interpessoais e pessoais sempre relacionados aos contextos vitais.

As biografias humanas normais, anormais e patológicas podem ser compreendidas porque resultam da interligação de eventos sucessivos que integram o viver humano e são co-responsáveis por sua saúde ou pelo adoecimento. Por isso, não existem dois pacientes iguais, nem duas evoluções patológicas semelhantes.

O medo, a angústia, os sofrimentos, as fantasias sobre o adoecimento e os sinais e sintomas físicos melhoram quando os partilhamos com outra pessoa que nos acolhe e nos escuta inteligentemente. Este é, também, o fundamento dos grupos terapêuticos.

O médico pode ajudar o paciente a processar tais informações propiciando-lhe espaço para colocar o seu discurso, possibilitando-lhe organizar o significado da doença durante o transcorrer da interação. É recomendável que o médico adote a postura catalista -, aquele que trabalha junto com o doente -, renunciando assim ao papel analista, que pretende interpretar os males do enfermo a partir de um viés teórico adotado e imposto pelo profissional. [14]

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Para lembrar: Acolher e acompanhar os discursos (verbal, paraverbal e averbal) do paciente facilita a auto-organização e a auto-estruturação das percepções, cognições e afetos deste paciente.

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Em tese, nos primeiros 10 minutos da entrevista o médico precisa ficar no campo da acolhida para propiciar a emergência de respostas espontâneas do paciente e reduzir as possibilidades de "contaminá-las” com as perguntas “engessadas” da anamnese tradicional.

Aprimorando habilidades e competências

Saber comunicar com adequação acima da média das pessoas, é habilidade imprescindível na prática médica[16] porque ajuda o médico a atuar no processo saúde-doença à partir de uma perspectiva multiaxial.

A comunicação clínica bem-sucedida facilita a investigação semiológica; e os dados obtidos pela investigação semiológica tornam possível o raciocínio clínico. Na verdade, para se obter o diagnóstico mais preciso, o prognóstico mais acertado e a terapia mais efetiva deve-se dominar as seguintes habilidade e competências:

  1. Habilidade para construir uma comunicação bem-sucedida. Faz-se necessário comunicar com competência acima da média, para estabelecer uma comunicação empática bem-sucedida, no contexto da interação clínica. A comunicação bem-sucedida antecede e facilita a investigação semiológica.
  2. Competência semiológica para reconhecer e dar significado médico aos eventos multiaxiais para permitir a identificação de danos patológicos funcionais e estruturais que podem perturbar o físico (dano no corpo), a mente (dano no cérebro), as relações interpessoais (dano interpessoal), as relações de papéis e ideologias (danos sócio-culturais), as relações econômicas e de trabalho (danos socioeconômicos).
  3. Competência para estabelecer o raciocínio clínico correlacionando os dados obtidos com a base de conhecimentos, rica e extensa, que se fundamenta em evidências clínicas e outras fontes confiáveis, incluindo a memória do médico, de acordo com a necessidade de cada momento.
  4. Competência para conhecer e aplicar os recursos terapêuticos disponíveis (incluindo a si próprio, médico). Manter-se atualizado e informado sobre indicações, contra-indicações, posologia, toxicidade e efeitos colaterais, sempre levando em conta a individualidade do paciente e de seu organismo.

Além da linguagem de contato social

Ao comunicar-se no cotidiano, as pessoas se falam, comentam os fatos da vida, opinam sobre assuntos vários, mas com limites. Esta estratégia comunicacional limita a interação do indivíduo a uma "zona de troca" de insumos mínimos, para manter a sobrevida e o convívio social, evitando expor à influência de terceiros as suas angústias, sofrimentos, dúvidas, emoções, crenças e convicções mais arraigadas -, estratégia utilizada, com maior ou menor consciência, para dificultar e/ou inviabilizar mudanças na estrutura do Eu.

Essa é a comunicação para sobrevivência que não ultrapassa os limites da "bolha invisível" a qual, já dissemos, é aquela que existe virtualmente ao redor do corpo de todo indivíduo, isolando-o seletivamente do semelhante e do mundo circundante.

A comunicação puramente 'relacional' não interfere em nada, porque não ultrapassa a membrana que isola cada um de nós do mundo circundante. Não obstante, as pessoas mudam. E mudam por causa da comunicação... quando a membrana é atravessada e são revolvidas as certezas instaladas, criando-se a mudança”. [23]

Validação do Eu.

Para que o indivíduo exista como pessoa, o Eu tem de ser permanentemente reconstruído com a atividade comunicativa. Esta parece ser a principal função da comunicação cotidiana "... a de manter constante a reconstrução do conceito de Eu e do oferecimento deste conceito para ratificação dos outros. (Neste)... nível de interação as pessoas não comunicam sobre fatos situados fora de suas relações, mas oferecem-se mutuamente definições dessa interação e, por implicação, delas próprias". [24]

Para trocar apenas insumos mínimos, ele precisa triar os conteúdos que elabora internamente para não exteriorizar informações que, no seu entender, podem revelar traços de sua personalidade que prefere ocultar para não desconstruir o conceito social do seu Eu.

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Para lembrar: A pessoa usa a linguagem do cotidiano para estabelecer um contato social regido pelos limites da "bolha invisível", mas o que ela elabora internamente das coisas que foram ditas ou silenciadas, lidas ou escritas, vistas ou exibidas é outro mundo em que ocorre toda uma decodificação particular que só excepcionalmente é capaz de compartilhar com o semelhante.

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Para fins terapêuticos, a pessoa pode mudar as suas convicções íntimas?

Sim. A pessoa muda na medida em que se sente suficientemente segura para compartilhar com o outro as convicções íntimas de seu mundo pessoal e, simultaneamente, é convencida a aceitar argumentos novos que irão superar os limites de sua "bolha invisível" e revolucionar suas crenças e certezas. Tais mudanças radicais ocorrem em contextos especiais como, por exemplo, na consulta médica -, que nos interessa aqui.

Mas como criar tais contextos?

O primeiro passo é definir objetivos. Em Medicina, os objetivos primeiros são os de sempre: prevenir, promover, produzir, reabilitar e recuperar a saúde e a qualidade de vida das pessoas, curando quando possível, aliviando sofrimentos, consolando sempre.

Somam-se, "aumentar a autonomia do doente e da família/ou rede social sobre a doença, no sentido do cuidado de si e da capacitação de cuidadores com a transferência de informações e técnicas de cuidado".

Após o registro dos dados de identificação, precisa-se construir a interação clínica bem sucedida acolhendo e escutando o paciente (e/ou acompanhante (s)).

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Dicas práticas: Pode-se iniciar a entrevista perguntando: O que posso fazer por você? Como posso ajudá-lo? Ou outras variantes do mesmo tema.

Convém evitar perguntas ingênuas e repetitivas, dos tipos: O que você tem? Qual a sua doença? Se o paciente soubesse, não precisaria submeter-se ao exame médico.

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Acolhimento

O acolhimento é uma forma de abordagem clínica que, em tese, utiliza os dez primeiros minutos da entrevista para acompanhar o discurso do paciente, sem pretender guiá-lo ou instruí-lo. Quando o médico acolhe e acompanha o que o paciente lhe diz, propicia-lhe um generoso espaço para a sua fala, transformando o tratamento numa oportunidade de desenvolvimento de sua autonomia individual viabilizando a sua co-participação no processo de cura. A doença é focada como parte de sua biografia o que lhe propicia refletir sobre os percalços da própria existência, fazendo-se ciente da própria autonomia para descobrir novos caminhos a partir da reorganização de seus afetos, de suas cognições e de seu campo perceptivo. Lógico, somente a pessoa que está vivendo a experiência é capaz de reorganizá-la, mas o médico pode facilitar a sua tarefa assumindo uma conduta dita “catalisadora”.

Além disso, acolhendo e acompanhando a reorganização das experiências do paciente o médico se coloca no lugar do paciente exercendo, portanto, a empatia na sua forma mais operacional, o que lhe propicia apreender o tom afetivo e plural de sua (do paciente) comunicação e compreender o significado correto de suas vivências, incluindo a natureza dos pensamentos e dos sentimentos que verdadeiramente experimenta; e, a seguir, procurar decodificar sinais e sintomas, identificando os liames e interligando os eventos relevantes.

Por fim, para conhecer profundamente o paciente, convém ao médico não só estar perto dele, mas principalmente estar do lado de dentro de sua bolha invisível.

O que é metacomunicação?

Diz-se que uma pessoa está metacomunicando quando ela confirma ou desconfirma uma linguagem com outra diferente para definir o tipo e a qualidade de interação que está construindo com o interlocutor. Exemplificando:.

Médico: A secreção ainda está saindo muito?

Paciente: Não, está saindo só um pouco! - Enquanto fala balança a cabeça verticalmente, metacomunicando, negando, desconfirmando, desqualificando o que diz verbalmente. (Adaptado de um exemplo do livro Comunicação tem remédio de Maria Lúcia Paes e Silva)

Convém lembrar a linguagem averbal do paciente é a matéria prima que permite ao médico fazer o acompanhamento empático do que está sendo dito, porque a sua principal função é a de expressar emoções.

O que é acompanhamento empático?

É uma estratégia de leitura do emocional do paciente obtida com a decodificação de suas mensagens averbais, correlacionando-as com as próprias, do médico.

Outro recurso disponível é propiciar a reflexão do paciente com paráfrases, isto é, repetindo o que ele diz com palavras diferentes ou rearrumando as suas frases (Você está me dizendo que... Você quer me dizer que... Pelo que entendi você quis dizer...).

O acompanhamento empático outorga ao paciente o papel de "explorador" de seu processo saúde-enfermidade e ao médico o de "facilitador" ou "catalisador" dessa exploração, atuando como organizador. Trabalhando com as respostas de acompanhamento o médico ficará mais no campo da acolhida e menos no da intervenção diretiva - para propiciar ao paciente maximizar a sua autonomia.

Para que serve o acompanhamento empático?

Serve tanto para empatizar com o paciente, quanto para permitir ao médico superar os limites de sua (do paciente) "bolha invisível", abrindo espaço para identificar ansiedades, fantasias, crenças, dúvidas e certezas e produzir mudanças terapêuticas no seu corpo físico e nos seus perceber, sentir, pensar e agir.

O acompanhamento empático não é uma panacéia, embora seja indicado na maioria das situações clínicas que corresponde a 60% dos atendimentos médicos. Os casos pontuais de vítimas de estupro e outras aberrações sexuais, violência branca e vermelha, desastres e catástrofes naturais, lutos vários, sequestros, urgências e emergências, personalidades psicopáticas, depressões graves e psicoses requer estratégias diferenciadas de acompanhamento empático.

Seguem-se dois exemplos de uma mesma consulta clínica com e sem acompanhamento empático.

Exemplo clínico 01, centrado na doença, sem acompanhamento empático.

Médico - Desde quando tem corrimento?

Doente - Há dois anos, desde que nasceu o bebê.

Médico - Coça?

Doente - Às vezes.

Médico - Tem odor desagradável?

Doente - ­ - Desvia o olhar, baixando a voz.

O médico centrado na doença e não na doente, ignora a sua sinalização averbal de que o odor lhe causa mal-estar, por isso, persiste na tentativa de qualificar os aspectos físicos do corrimento, elegendo o que parece importante para ele, mas não para a paciente. Sendo assim, desqualifica o que ela lhe está comunicando como queixa prioritária (o odor traz mal-estar), e insiste:

Médico - Qual é a cor?

Doente - Bem, é difícil de descrever, é escuro, suponho! - em represália, a paciente reage desqualificando, à sua maneira, a comunicação do médico para indicar, no aqui/agora, que a cor do corrimento não lhe interessa. Naquele instante, lhe é mais importante falar sobre o mal-estar causado pelo odor.

Médico - Mas é branco, amarelo, esverdeado ou acastanhado? Insistindo em centralizar o seu interesse no diagnóstico da doença, que não é o mesmo interesse da paciente.

Doente - Pode ser qualquer uma dessas cores! desqualificando, outra vez, a pergunta do médico. É como se estivesse dizendo: Isto não me interessa neste momento!

Médico (impaciente) - Então não sabe me dizer qual é a cor? Nesta altura, a interação clínica atinge um impasse mal-sucedido, com todas as implicações negativas.

Mesmo exemplo clínico 01, agora centrado na doente e não na doença

Como a consulta poderia ter ocorrido se houvesse o acompanhamento empático que possibilita a leitura e a valorização da linguagem averbal da paciente:

Médico - Tem odor desagradável?

Doente - Sim, tem...! - Desvia o olhar, baixando a voz.

Aqui o médico, centrado na paciente e não na doença, é capaz de perceber o desvio do olhar (para baixo), o tom de voz (baixo e triste), e a tonalidade vocal (ansiosa) e fazer perguntas de acompanhamento referenciadas pelas mensagens averbais.

Médico - Você está ciente de que o odor lhe causa mal-estar, não é? Acha que outras pessoas têm consciência disso?

Doente - Bem... Sim... o meu marido, sem dúvida (começa a chorar). Quando se agravou no ano passado, ele me chamou a atenção. Eu apenas evito que ele se aproxime de mim.

Médico - E alguém, além de seu marido, disse alguma coisa?

Doente - Bem, na verdade não. Mas hoje em dia não convivo muito socialmente Tenho sempre receio de que outras pessoas se apercebam.. Nunca me sinto confortável na companhia de outras pessoas! -continua chorando. (MYERSCOUGH, 1989)

Este simples e singelo acompanhamento empático promoveu uma interação clínica bem-sucedida com respostas sem resistências, facilitando o diagnóstico preciso e a prescrição da terapia curativa dos sintomas da paciente.

Reestruturando e reorganizando os campos perceptivo/afetivo através de respostas – (Adaptado de PORTER, 1950)

Habitualmente, o paciente chega à consulta trazendo seu mal-estar acompanhado de medos, incertezas e interpretações várias sobre o que está sentindo. Acontece porque a doença gera ansiedade e sofrimentos, desorganizando a percepção, os pensamentos e os sentimentos.

Se o médico, na tentativa de estabelecer um diagnóstico precoce, utiliza os primeiros dez minutos do contato inicial fazendo perguntas focadas tão somente na disfunção (O que você sente? Quando começou? Como se desenvolveu? Quais os fatores de melhora ou piora? Qual a densidade, a textura, a cor da lesão, do excreta, etc.), o diálogo clínico é substituído pelo monólogo médico interrogativo de viés somático que elimina o discurso do paciente, reduzindo-o a um corpo passivo objeto de intervenções invasivas. Por isso, corre-se o risco de transformar a consulta numa relação assimétrica - médico/sábio-paciente/ignorante -, onde o importante é diagnosticar a doença ignorando o doente.

Tal distorção o leva a tratar o paciente como uma coisa mecânica sem discurso próprio e a si mesmo como uma máquina repetidora de perguntas pré-fixadas por terceiros, cujas origens remontam ao passado, tornando-as pouco eficazes para fazer um diagnóstico individualizado já que não inclui a realidade das pessoas do século XXI interagindo numa consulta médica com o objetivo de promover a saúde.

Entretanto, se ampliarmos os limites da investigação clínica, de modo a incluir o efeito do comportamento de um indivíduo sobre os outros e as reações dos outros sobre este indivíduo, o foco transfere-se da subjetividade artificialmente individualizada para as interações entre as partes de um sistema mais vasto que inclui não somente o somático, mas também os contextos vitais, a cultura, os planos de vida, as estratégias de sobrevivência, as crenças, os símbolos, os arranjos familiares, os valores, as ideologias, convivência interpessoal ora mais ora menos harmoniosa. Como não há “... nenhum órgão que funcione isoladamente.. quando um órgão apresenta algum sintoma, é preciso buscar as razões desse problema utilizando uma abordagem integrada de todo o organismo. A visão integrada, sintética, deve ser principal, enquanto a sintomática, analítica, deve ser complementar. O problema da medicina atual á a inversão da proporção entre estas duas visões”.[25]

Desta perspectiva ampla e multifacetada, o médico competente é aquele que privilegia a abordagem multiaxial das interfaces interligadas, próprias do ser humano, para compreender, explicar e tratar a sua doença. O instrumento maior dessa abordagem plural é a comunicação.

Importância das vivências do paciente sobre a sua própria doença

Para que a consulta clínica seja fecunda e produtiva é preciso, pelo menos no início da entrevista, que ela seja estruturada a partir das vivências do paciente - que, em tese, sabe mais do que o médico sobre seus males, seu passado e seu presente.

Adotando a atitude de acolhimento interessado, deixando o paciente falar, sem interromper, por pelo menos, dez minutos iniciais, centrando-se nele para acompanhar e validar o seu discurso; e eis o grande segredo: utilizando dominantemente as linguagens paraverbal e averbal, de forma interativa, o médico se tornará capaz de imergir no mundo subjetivo do paciente e reduzir a sua ansiedade, a partir da identificação de seus desejos, necessidades, incertezas, medos, abrindo espaço para discutir, clarificar e refletir sobre eles.

Diretividades médicas e suas características

As ações diretivas do médico podem ser classificadas em:

Indicativa. Expressa uma opinião indicando como o paciente poderia ou deveria agir: "Na minha opinião..." ou "De acordo com as circunstâncias, e assim que você deve proceder..."

Instrutiva. Visa, de algum modo, instruir o paciente a seu próprio respeito. De maneira direta ou indireta, indica como o paciente poderia ou deveria representar para si mesmo a situação: "Esta não parece ser a melhor maneira de perceber o fato.." ou "Talvez seja diferente do que você pensa..." ou "Você bem que poderia pensar desta forma..."

Tranquilizadora (precoce). Objetiva tranquilizar precocemente o paciente, para aliviar a sua angústia (e a do próprio médico). Funciona como anestésico transitório, paliativo. Pressupõe que o sofrimento do paciente não é justificado, que o problema não é sério, não existe como ele o vivencia: "A coisa não é bem assim..." ou "Acalme-se, tudo pode melhorar.." ou "Você tem forças para superar...", ou "Tenha esperanças de que tudo vai melhorar..." ou "Tenha pensamentos positivos..."

Interpretativa. Pretende ampliar a discussão buscando aprofundá-la sob o viés de uma teoria preferencial do médico. Ela se torna referência para fundamentar a interpretação dos eventos patológicos e interativos. O médico sugere que o paciente poderia ou deveria examinar mais de perto um ou vários aspectos do problema - em suma, informa que o problema é mais complexo do que ele imagina: "A causa é mais profunda, do que você imagina..." ou "Você não reconhece as causas, porque estão profundamente encravadas no seu inconsciente..." ou "Existem coisas que você ignora, mas que estão influenciando seu modo de sentir, pensar, agir..."

Tais diretivas têm a característica comum de serem impositivas, ou seja, procura, de alguma forma, conduzir o paciente minimizando a sua autonomia.

Diretiva ou semi-diretiva?

A interação semi-diretiva é melhor do que a diretiva? Absolutamente, não! Na interação médico-paciente há lugar para ambas, na dependência do momento da anamnese. E quais são os momentos da anamnese médica? Em termos formais:

Contato inicial – É onde começa a entrevista (entre duas vistas) que só se completa com o fim da anamnese (que pretende recuperar as memórias do paciente sobre a sua doença). Após a identificação, deixe o paciente falar livremente por, no mínimo, dez minutos, sem interrompê-lo. Procure lidar com o paciente como uma pessoa relacionando-se com outra pessoa, estando atento a ele e às suas necessidades sem precisar interpretar ou intervir sempre. (STEWART, 2010). Os objetivos são: 1) Estabelecer os alicerces para a construção de uma interação bem sucedida (para o médico e para o paciente).

2) Motivar o paciente a debruçar-se sobre sua própria existência para descobrir a relação entre a enfermidade e as suas relações com o mundo e com as pessoas importantes de sua vida. Nesta etapa qualquer abordagem diretiva é contra-indicada.

Segue-se a anamnese:

Queixa principal.

História da doença atual.

Antecedentes fisiológicos, patológicos, familiares.

Interrogatório sistemático. (essencialmente diretivo).

Exame Físico.

Exames especiais: mental, neurológico, outros.

Tudo sobre a égide dos princípios da avaliação multiaxial contextualizada que privilegia as interfaces humanas.

Como construir um contexto especial

Acolhendo, acompanhando empaticamente e validando o discurso do paciente o médico estará criando um contexto de confiança mútua capaz de propiciar-lhe a segurança externa no que se refere ao sigilo profissional, o respeito à privacidade e a proteção de sua dignidade; também lhe irá propiciar a segurança interna, possibilitando-lhe superar a vergonha e o incômodo de expor e partilhar a desorganização e a desestruturação de seu mundo subjetivo. Tudo isso é possível, se o médico for suficientemente hábil para captar as mensagens averbais do paciente e, ao mesmo tempo, comunicar pensamentos e sentimentos com a mesma e “silenciosa” linguagem não-verbal, através de seu próprio comportamento.

Mas, atenção! Só funcionará se o paciente estiver convencido de que o que está sendo feito é beneficente (vai lhe fazer bem) e não maleficente (poderá lhe causar prejuízos).

Linguagem digital e analógica

Os seres humanos se comunicam digital e analogicamente. A linguagem digital (de dois dígitos, sim e não) é verbal e representa o mundo por palavras de sentido arbitrário, aceitas pelo consenso. Por exemplo: convencionou-se que os objetos que utilizamos para sentar devem-se chamar "cadeira", em português; se fosse outro o consenso, poderia se chamar "sentanela". A linguagem digital é competente para comunicar conteúdos e fazer descrições, como por exemplo: dor de cabeça aguda, de um só lado, acompanhada de náuseas e escotomas visuais, que piora com a luminosidade; mas não eventos interacionais dos tipos: atenção, confiança, empatia, compreensão.

A linguagem analógica (ou averbal ou icônica, aquela que se assemelha a mensagem) afirma o sim, mas é ambígua para dizer o não. Representa o mundo sem palavras, através de posturas, gestos, expressões faciais, tom de voz, ritmo, freqüência da emissão das palavras, vocalismos (ai!, ui!, Hum! Hum!) e quaisquer outras manifestações não verbais de que o organismo é capaz. “Quando se observa e corretamente interpreta a comunicação não verbal, a pessoa tem acesso à verdade e às emoções efetivamente experimentadas”. (Sergio Senna Pires)

A comunicação averbal possui a curiosa qualidade ambígua e antitética das palavras primitivas. Ou seja, uma mesma mensagem pode significar coisas opostas. Há lágrimas de dor e de júbilo; um punho fechado pode assinalar agressão ou contenção; um sorriso pode transmitir simpatia ou animosidade e as reticências podem ser interpretadas como tato ou como indiferença.

Apesar disto, é mais competente que a digital para transmitir emoções e gerenciar a qualidade dos vínculos afetivos mediante a expressão facial, a inflexão de voz, o gesto, a postura, a velocidade da fala, sua cadência e suas pausas, as tonalidades emocionais, o suspirar, acenar com a cabeça, sorrir, chorar[26], etc. Nestas circunstâncias as verbalizações ambíguas dizem menos que os gestos e os olhares que se multiplicam na consulta clínica.

Convencendo o paciente

A linguagem verbal (digital) é excelente para transmitir os conteúdos das mensagens, mas se mostra incompetente para expressar afetos. É por isso que não se convence ninguém, dizendo-lhe verbalmente: “Vamos desenvolver um trabalho num contexto de confiança mútua, onde lhe darei um acolhimento franco, segurança interna e externa e respeitarei os seus direitos". Diz-se, mas não convence, porque a linguagem verbal costuma soar falso quando se refere a afetos.

Mas, então, como comunicar tais propósitos ao paciente de forma convincente? Transmitindo-os em linguagem analógica (paraverbal, gestual, vocal, averbal), e nunca as recitando em linguagem puramente verbal (digital).

A analogia é eficaz onde ainda não é possível a digitalização (JUNG) como ocorre, por exemplo, na comunicação do adulto com animais, com doentes mentais ou com crianças pequenas; também onde a digitalização deixa de ser possível, como, por exemplo, em momentos cruciais da interação médico-paciente. Refiro-me às etapas de acolhimento, atenção, segurança, empatia, validação, reconhecimento e aceitação da própria identidade, compreensão, respeito, disponibilidade, etc., que não podem ser transmitidas pela linguagem digital, mas podem ser expressas e experienciadas sob formas de comportamentos, atitudes e posturas, de tal forma, que um sorriso pode transmitir alegria, a aproximação, intimidade, o toque delicado, afetividade, e assim por diante. O exemplo clínico abaixo ilustra bem as limitações da linguagem verbal:

O que se deve contar ao paciente sobre seu real estado de saúde?

Essa é uma discussão complexa. Mas, de uma forma ou de outra, tudo deve ser dito. Eu procuro sentir até onde o paciente deseja mesmo saber. Isso nem sempre é dito em palavras por ele. Pode haver enganos. Certa vez, um paciente com pouco mais de 40 anos sentou-se à minha frente de mãos dadas com a mulher e disse: "Bem, agora que o senhor fez todos os exames, quero saber exatamente minha situação. Não se preocupe com minha reação. Sou bem-sucedido profissionalmente, tenho uma situação financeira estável e minha família ficará bem se eu vier a faltar. Além de tudo, sou um sujeito racional. Sei lidar com emoções". Revelei, então, seu gravíssimo problema e a impossibilidade de submetê-lo a uma intervenção cirúrgica, o que provocou a indagação de quanto tempo lhe restava de vida. Pela experiência, em casos dessa natureza, embora nunca seja possível precisar o tempo de sobrevivência, acenei com um tempo em torno de seis meses. O olhar dele se congelou. Ele apertou o braço da mulher e falou: "Não te disse, querida, que não era nada grave?". Foi um processo de imediata negação da realidade. Nunca mais esqueci aquele momento.[27]

Segundo entendi, embora tivesse percebido as mensagens averbais – antes e depois da resposta do paciente (atente para o que sublinhei), o cirurgião não fez a sua leitura adequada. Deixou-se seduzir pelos argumentos verbais do paciente e decidiu revelar a condição clínica grave. Foi “surpreendido” ao constatar que a fala do paciente não expressava seus verdadeiros sentimentos.

Comunicação ritual

Por exercer uma influência decisiva no perceber, no sentir, no pensar e no agir das pessoas é importante para o médico saber como funciona a comunicação ritual.

A comunicação ritual (conjunto de ritos[28]) é concebida para influenciar pessoas. À semelhança das outras formas de comunicação, utiliza as principais linguagens conhecidas: averbal, verbal, paraverbal. Trata-se de uma atividade cênica que, à semelhança de uma peça de teatro, tem a sua dramaturgia própria, roteiro previsto e atores desempenhando papéis sociais específicos (médicos, professores, padres, pastores, mães de santo, doutrinadores espíritas).

Porém a sua principal característica é a de ser uma forma de comunicação “encantatória”, que encanta/seduz o interlocutor dialogando com entidades quiméricas e invisíveis.

A chamada função encantatório costuma invocar tais entidades -, santos, seres místicos dotadas de poderes sobrenaturais que parecem existir para serem adorados e controlar/castigar os seus seguidores. Buscando trazer os deuses e as forças cósmicas para o mundo real, o diálogo com as entidades quiméricas se faz de duas formas principais:

Falar direto com elas, a sós, ou na presença de terceiros: “Oh! Deus (Alá, Jeová, Xangô, Guia Espiritual, Cristo, Jesus) preciso que me ajude imediatamente! Espero que não se esqueça de mim! Prometo acender 100 velas se me permitir a graça de alcançar o meu pedido! Mãe das águas, proteja a seus fiéis seguidores, etc”.

Invocar a entidade na presença de terceiros, para intimidá-los ou para reforçar o poder sobrenatural do invocado: “Lembre-se, Deus escreve por linhas tortas. Os homens padecem porque esqueceram de Deus! Só Ele nos pode salvar! Oxalá guia os seus passos! Não se esqueça! O seu guia espiritual lhe protege desde o nascimento. Jeová, nos provê a todos! Cristo está de olho em você!” E aqui, cabe uma pergunta: Porque as pessoas que dialogam com amigos imaginários são classificadas como “loucas”, mas se afirma que está falando com “Deus” ou “Cristo” são tidas como possuidoras de sanidade mental?

Comunicação ritual religiosa

A comunicação ritual religiosa costuma mexer com as emoções das pessoas, porque tem um roteiro próprio – celebração de missa, cerimoniais de candomblé, liturgias de centros espíritas e de enterros - e seus participantes desempenham papéis sociais pré-definidos.

Exemplificando: no casamento católico tradicional temos ritos (conjunto de cerimônias) constituídos pelos desempenhos de noivos, padre, convidados, igreja – tudo se desenvolvendo como numa peça de teatro onde cada um tem um papel a desempenhar. Exemplos: a noiva só deve chegar depois do noivo; uma chuva de arroz despejada nos recém-casados garante um futuro promissor, e coisas que tais. A influência da comunicação ritual sobre as pessoas é bastante considerável. Por isso, muitas noivas costumam dizer que o casamento foi o dia mais feliz de suas vidas.

Comunicação ritual na consulta médica

Na consulta médica o ritual é constituído pelo contexto (consultório, com a indefectível mesa divisória, cadeiras, formulários e demais adereços) e pelos comportamentos pré-definidos que ocorrem dentro dele. O médico deve estar vestido com um uniforme previsto (no mínimo, um jaleco), portar tensiômetro e estetoscópio e representar o seu papel de médico – postura e linguagem adequadas à situação. O paciente, por sua vez, também tem um papel a desempenhar. Ambos seguem um roteiro básico pré-estabelecido, mas que, felizmente, comporta variações.

A soma do todo

Para criar vivências de acolhimento, atenção, segurança, validação, reconhecimento e aceitação que irá produzir mudanças efetivas na pessoa adoecida, deve-se utilizar dominantemente as linguagens analógicas (paraverbal, averbal, vocal e ritual), cuidando de agir, a cada passo, com o máximo de prudência para evitar equívocos. Só assim, se consegue construir uma dinâmica comunicativa "na presença muda, nos olhares, no contato dos corpos, que transcende as formas convencionais da linguagem verbal, indo além dela, além do signo, além da significação, superando a linguagem do contato social". (E mais, ao incluir na partilha de informações) "... os conteúdos que o paciente elabora internamente (consegue-se) obter sentidos imprevisíveis, únicos, irrepetíveis, inusitados, inesperados, a partir das coisas ditas ou silenciadas, lidas ou escritas, vistas ou exibidas, revelando outro mundo em que ocorre toda uma decodificação particular"., incluindo suas angústias, seus sofrimentos e suas fantasias.

Comunicação efetiva

Enfim, se a comunicação clínica é bem-sucedida muda o sentir, o pensar e o agir do paciente em relação a seu corpo físico, à sua doença e a sua vida, facilitando a adesão (ou concordância) ao tratamento. E muda exatamente porque a comunicação efetiva bilateral está se fazendo com sucesso.

Notas:

[1] Professor Adjunto da EBMSP, cursos de Psiquiatria e Semiologia Mental.

[2] As nossas tragédias são sempre de uma profunda banalidade para os outros. Oscar Wilde, dramaturgo e escritor irlandês.

[3] "Interação" significa, aqui, a troca mútua de mensagens produzindo influências recíprocas entre médico e paciente.

[4] Complemento com a opinião de Everson Nogoceke, cientista do laboratório Roche, no que se refere à diversidade molecular. Um mesmo medicamento não funciona em todos os pacientes. Isso ocorre porque as pessoas são diferentes do ponto de vista somático, mental, interpessoal, pessoal, contextual e, por consequência, também molecular.

[5] Comunicando-se com o paciente terminal Mônica Martins Trovo de Araújo, Maria Júlia Paes da Silva, RSBC , São Paulo, Sábado, 17/10/2009 , Revista Nº 23 Página,http://www.rsbcancer.com.br/rsbc/23_Pag_comunicando.asp?nrev=Nº 23&Pag=

[6] Manual Merck, 17ª. Edição.

[7] Escrever (para si e para alguém) ou falar (com um interlocutor interessado) é uma forma de comunicação que clarifica e auto-organiza a experiência.

[8] É impossível não se comunicar: atividade ou inatividade, palavras ou silêncio, tudo possui um valor de mensagem. Paul Watzlawizk in WATZLAWICK, Paul, BEAVIN, Janet H., JACKSON, Don D., Pragmática da comunicação humana, SP, Cultrix, 1981.

[9] Idem, 5.

[10] Perestrello, Daniel, A Medicina da Pessoa, Ed. Atheneu, RJ, 2009.

[11] Ibidem4

[12] Adaptado de TAVARES, Felipe de Medeiros, in Rev. bras. educ. ed. vol.31 no.2, Rio de Janeiro May/Aug. 2007.

[13] LEADER, Darian, e CORFIELD, David, Por que as pessoas ficam doentes, Best Seller,RJ, 2009.

[14] O paciente ganha voz na hora de decidir os rumos do tratamento e começa a dividir com o médico a responsabilidade sobre os cuidados com a própria saúde... deixando de ter um comportamento passivo para assumir maior controle no gerenciamento de sua saúde.” ISTO É, edição 2083 de 0utubro de 2009.

[15] Autor não identificado. Fizemos inclusões e correções.

[16] Nos Estados Unidos, cada vez mais escolas de Medicina passaram a formalizar cursos de técnicas de comunicação em seus currículos, no início dos anos 80. Os programas de treinamento já naquela época, neste país, encaravam o aprimoramento da comunicação médico-paciente não só como possível, mas como desejável.

[17] WATZLAWICK, Paul, BEAVIN, Janet H., JACKSON, Don D., Pragmática da comunicação humana, SP, Cultrix, 1981.

[18] Paralinguagem (ou paraverbal) é qualquer som usado no processo comunicativo e produzido pelo aparelho fonador, que não faz parte do sistema sonoro da língua falada.

[19] R. L. BIRDWHISTELL foi o criador do neologismo CINÉSICA e pioneiro no estudo da linguagem do corpo. Em 1970, na Philadelphia, publicou um livro emblemático, Kinesis and context, pela Pennsilvania Press.

[20] Os sinais silenciosos da comunicação não verbal tendem a revelar razões e emoções ocultas – medos, ansiedades, frustrações, alegrias, indecisões, honestidade e muito mais. GOMAN, Carol Kinsey, A vantagem não verbal, Ed.Vozes, RJ, 2010

[21] ABDO, Carmita Helena Najjar, Armadilha da comunicação, o médico, o paciente, o diálogo. SP, Lemos Editorial, 1966, pág. 40.

[22] SILVA, Maria Júlia Paes da, Comunicação tem remédio, a comunicação nas relações interpessoais em saúde, SP, 2005.

[23] MARCONDES, Ciro, Filho, Projeto nova teoria da comunicação, SP, 1977,existocom@yahoo.com.br

[24] ASSUMPÇÃO, Maria Luiza T., Estruturação da entrevista psicológica, ed. Atlas,

[25] KIKUCHI, Tomio, introdutor da macrobiótica no Brasil. A Tarde, Ciência e Vida, B13, 03.04.2011, Salvador, BA.

[26] A respeito do choro, uma pesquisa intitulada "Trust in a teardrop" (Confie numa gota de lágrima), desenvolvida pela Universidade de Tel Aviv, Israel, revela que a lágrima reforça vínculos interpessoais, funciona como um pedido de ajuda e pode aquietar um inimigo. Considerando que ninguém morre por chorar, deixe o seu paciente derramar as suas lágrimas, compreendendo que, naquele instante, é o melhor código que dispõe para expressar os seus sentimentos.

[27] LOPES, Adriana Dias, Entrevista Ben-Hur Ferraz Neto, Caixa-preta na cirurgia, VEJA, Edição 2134, 14 de outubro de 2009.

[28] Os ritos são procedimentos invariáveis - regras, costumes, hábitos, cerimoniais -, que se expressam como comportamentos repetitivo

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