quarta-feira, 27 de julho de 2011

PEQUENO GUIA DA ENTREVISTA MÉDICA

PEQUENO GUIA DE ENTREVISTA CLÍNICA

José Pinto de Queiroz Filho

“Tão importante quanto conhecer a doença que o homem tem, é conhecer o homem que tem a doença.” WILLIAM OSLER

Entrevista Médica

A entrevista médica (que contém a anamnese, e não o contrário, como se costuma pensar) é um encontro privilegiado de duas pessoas (a díade, médico/paciente) que ocorre dentro de espaço próprio, em circunstâncias especificas, sob regras pré-determinadas e objetivos a atingir sempre voltados para a promoção da saúde e do bem-­estar e melhora da qualidade de vida do paciente.

A entrevista não é um procedimento apenas verbal, espécie de entrefalas, mas uma interação que comporta outras formas de comunicação humana com destaque para a linguagem averbal.

Enquanto a anamnese procura recuperar a memória de eventos clínicos, através do interrogatório dirigido e sistemático centrado na doença -, IDENTIFICAÇÃO, QP, HDA, I.S., ANTECEDENTES e HISTÓRIA PSICOSOCIAL -, a entrevista utiliza o método de interrogatório semidirigido[1] e da interação semi-estruturada[2] para estabelecer uma interação médico/paciente centrada no doente. A abordagem semi-diretiva é também técnica preciosa para ajudar o paciente a auto-organizar o próprio pensamento. “Por um lado, avalia sinais e sintomas da doença para estabelecer um diagnóstico diferencial; por outro, procura entender a experiência única da pessoa estar doente.[3]

Sendo assim, a entrevista funciona como um valioso instrumento propedêutico e terapêutico que privilegia o paciente na sua totalidade multiaxial valorizando-se como fonte semiológica de informação de dados referentes a fatos, idéias, crenças, maneiras de pensar, opiniões, sentimentos e comportamentos.

Resumindo: a ENTREVISTA busca compreender o doente: a ANAMNESE busca explicar a doença.

A prática da entrevista ou como fazer uma entrevista

Entrevista bem-sucedida e competência para comunicar.

O sucesso da entrevista e, por conseqüência, da anamnese, pode ser inviabilizado pela falta de habilidade do médico para comunicar-se com o paciente.

Pretendo, neste breve guia, mapear caminhos para o estabelecimento de uma interação clínica bem-sucedida - tanto para o entrevistado quanto para o entrevistador.

Atente, no entanto, que não se trata de receita de bolo prévia a ser seguida cegamente, mas de sugestões de técnicas a ser utilizadas na consulta face-a-face com o paciente; depende também do grau de sensatez de quem estiver aplicando, pois, somente assim se poderá criar a empatia necessária para se construir uma interação clínica bem-sucedida

Com fins práticos, fragmentarei as sugestões nos seguintes passos sequenciais:

1. Definir objetivos para cada passo.

2. Fazer pequena entrevista semi-estruturada

3. Iniciar o diálogo semidirigido, investigando: conduta exterior, objetiva, interpessoal; conduta interior, subjetiva, intrapessoal.

4. Investigar situações traumáticas.

5. Fazer o exame mental ampliado pesquisando, verificando e analisando as funções cognitivas e afetivas, à partir dos seguintes eventos: atenção à própria saúde física e mental, capacidade de decidir frente às questões pessoais e sociais básicas, qualidade de vida, estabilidade afetiva, qualidade dos vínculos interpessoais, vida sexual prazerosa, estabilidade financeira, satisfação no emprego, responsabilidade pessoal e social incluindo o sustento de si mesmo, compromisso com o estudo, grau de aceitação no grupo onde está inserido.

6. Delimitar um perfil multiaxial – mental, somático, social e pessoal - do paciente, sempre levando em consideração o contexto onde ele se encontra inserido.

Início

Objetivo para se ter em mente: aproximação inicial com o paciente.

Quando começa a entrevista?

Desde o primeiro contato com o paciente, no corredor, quando está sendo chamado, quando é conduzido até a sala de atendimento, quando é recebido na porta do consultório, ou em qualquer outra circunstância. Daí, por diante, você deve observá-lo, atentamente, (e comunicar-se continuamente com ele), até o fim da consulta – sem deixar de estar ciente de que ele também está lhe observando e, à sua maneira, comunicando-se continuamente com você. A maior ou menor habilidade para você construir esta interação inicial – utilizando as linguagens verbais, para-verbais e averbais – pode redundar em sucesso ou fracasso na obtenção dos objetivos clínicos que pretende atingir.

Como dar continuidade à comunicação clínica?

De início, deixe o paciente falar por, pelo menos, dez minutos, sem interrompê-lo. Não interromper o paciente parece fácil, mas não é: 65% dos pacientes são interrompidos após 15 segundos. Por isso, 54% dos distúrbios percebidos pelo paciente não são considerados pelos médicos e em 50% das consultas médicos e pacientes não concordam sobre qual é a queixa principal. (TORONTO CONSENSUS STATEMENT).

É desejável começar com um assunto que motive o paciente a falar. Habitualmente, sua doença e suas queixas atuais. Enquanto faz a anamnese convencional constituída de IDENTIFICAÇÃO, QP, HDA, I.S., ANTECEDENTES, HSP, para diagnosticar a doença, continue interagindo com o paciente, sempre tendo em mente os dois objetivos principais: conhecê-lo melhor e criar uma interação clínica bem-sucedida.

De que forma?

Ocupando-se em fazê-lo sentir-se acolhido, seguro (interna e externamente) e à vontade.

Para deixá-lo à vontade e propiciar a segurança interna, utilize, preferencialmente, a linguagem averbal deixando claro que vai acolhê-lo e respeitá-lo como ser humano único, facilitando-lhe a emersão da fala singular de uma pessoa que procura ajuda. Fala que só pode ser legitimada por ela mesma, autora e protagonista, até o possível, de sua vida. Desta forma, propiciam-se condições para que possa reproduzir livremente com o seu discurso “a lenta abrasão do trágico da experiência humana[4] que dá sentido e grandeza a cada vida pessoal, ainda que simples.

O averbal abrange necessariamente: comportamento cinético (movimentos do corpo), expressão facial, postura, gestos, inflexão de voz, seqüência, ritmo e cadência das palavras, e qualquer outra manifestação sem o verbo, sem a palavra, de que o organismo é capaz, acrescidos das pistas comunicacionais infalivelmente presentes no contexto da consulta clínica onde ocorre a interação médico/paciente.

Faz parte deste tópico o apresentar-se. Apresente-se, diga o seu nome. Informe-se antes e chame-o pelo nome, ou então, pergunte-lhe como prefere ser chamado. Aperte a sua mão, na chegada e na saída. Trate as pessoas idosas por Sr. ou Sra. Invista-se de facies tranquilo, amistoso, gentil. Comporte-se de forma discreta e seja empático[5]. Mantenha distância interpessoal apropriada de acordo com as circunstâncias. Quando necessário, toque amistosamente o paciente.

Para a segurança externa, basta garantir-lhe a privacidade e o sigilo profissional.

DICAS:

Não desqualifique[6] o discurso do paciente (interrompendo e desconsiderando as suas afirmações), pois vai colocá-lo na defensiva e terá dificuldades para atingir os objetivos clínicos – de diagnóstico, prognóstico, terapêutico.

O que se deve observar desde o início?

A apresentação do paciente: Descreva o semblante (fácies[i][7]) – aparência, rosto, cabelos, olhos (e expressões do olhar), boca (e sua expressividade), postura corporal, atitude psicomotora, vestuário. Observe, a partir de seu comportamento durante a interação, os modos de perceber, sentir, pensar e agir, e pergunte sobre a que gosta/não gosta, a que prefere/não prefere. Peça para apontar qualidades e defeitos das pessoas, das coisas, dos acontecimentos[8], mas também indague como se alimenta, como dorme, como se diverte e como se relaciona com os outros.

Acolhimento ou Pequena entrevista semi-estruturada

Objetivo para ter em mente: estabelecer o contato inicial.

Iniciando o diálogo semi-dirigido

Objetivo para ter em mente: saber ouvir é tão importante quanto saber perguntar.

Uma frase para começar?

Pode-se iniciar a entrevista perguntando: O que posso fazer por você? Como posso ajudá-lo? Ou outras variantes do mesmo tema.

Após o início da entrevista, você pode ousar mais, dizendo:

Gostaria de saber todas as coisas sobre você, ­mas só aquelas que você possa me contar! (Deixa o paciente mais seguro porque (pensa que) pode decidir a que dizer ou não).

Há muitas coisas que você não quer que eu saiba, que você não quer me contar. Há muita coisa sobre você mesmo que não quer discutir, por isso vamos conversar sobre o que você quiser. (Dá ao entrevistado a opção de escolher o que quer comunicar)

.

Você pode responder às minhas perguntas sem dizer nem um pouquinho a mais nem a menos do que devo saber! Isto é tudo que deve fazer -. nada mais. (Sugere limites toleráveis para a pessoa se comunicar).

Frase para o fim da entrevista

Se existem coisas especiais que ainda não foram ditas, esse é o momento. Mas somente para coisas especiais! (Torna mais fáceis as auto-revelações difíceis).

Investigando a conduta interpessoal, objetiva, exterior.

Objetivo para ter em mente: pesquise a relação do paciente com o mundo externo.

Condutas pregressas e atuais: como se comporta em relação a família, a escola, o trabalho, a profissão e a vida sexual.

Experiências de vida amorosa, afetiva, sentimental.

Dados sobre a iniciação sexual (se necessário).

Informações sobre vida sexual ativa (quando necessário).

Preferências sexuais (se couber).

Escola.

Trabalho.

Primeira grande alegria.

Primeira grande decepção.

Três experiências importantes.

Como a doença interferiu em sua vida.

Quem é {ou foi) a pessoa mais importante de sua vida. Por quê?

Qual a coisa mais importante que já fez? Por que foi importante?

Qual a coisa mais importante que deixou de fazer? Por quê? .

Qual a coisa mais importante que precisa fazer? Por quê?

Investigando a conduta intrapessoal, subjetiva, interior.

Objetivo para ter em mente: procure penetrar no mundo interior do paciente perguntando sobre o seu pensar e o seu sentir:

A primeira experiência de que se lembra.

O que sente sobre pais e irmãos.

Experiências da infância e da adolescência.

O que sente sobre a amizade e as relações com os amigos.

O que sente sobre as pessoas?

Opinião sobre o mundo em que vive.

Que nota, de 0 a 10, daria para sua qualidade de vida?

Investigando situações traumáticas da vida.

Objetivo para ter em mente: tentar compreender o agora, relacionando-o com eventos passados.

Traumas da infância e da adolescência; problemas conjugais; conflitos crônicos; envolvimento com drogas; violência e morte na família; rompimento afetivo; perda de emprego; transtornos sexuais; acidentes, doenças, stress, frustrações pessoais, etc.

Fazendo o exame das funções mentais restritas.

Objetivo para ter em mente: investigar o sentir, o pensar e o agir do paciente no aqui/agora.

Investigar as funções mentais: consciência (alerta, ciente de si e do ambiente, auto e aloorientado) sensopercepção (ilusões?), memória (retrógrada, anterógrada, de trabalho, social), pensamento (idéias de ruína, suicídio, delírio, delirium), humor e afetividade em geral (alegria ou tristeza exaltadas, irritabilidade fácil, agressividade, apatia, bom contato), inteligência (normal, superior, inferior), juízo de realidade, utilizando como fontes de dados a apresentação (aparência, modo de vestir-se), mímica facial, modo de se expressar (riqueza ou pobreza verbais), atitudes, comportamento e reações durante a entrevista; linguagem verbal (coerente/incoerente). Linguagem averbal (adequada à situação? Sincrônica com a linguagem verbal?).

Síntese da compreensão do doente.

Objetivo para ter em mente: sintetize a sua compreensão do doente como uma pessoa que tem uma doença, utilizando como referenciais:

Caráter e personalidade.

Planos para o futuro (esperançoso com o porvir? Desiludido? Em expectação? Conformado? Revoltado? Indiferente? Desesperado)?

Perspectivas de recuperação. O que pretende fazer quando deixar o hospital (ou receber alta) Quando concluir o tratamento no ambulatório? (Quando ficar bom)

Que tipo de ajuda acredita irá necessitar. Quem poderá ajudá-lo?

De onde tira forças para enfrentar a doença? (Da família, da religião, do companheiro (a)). De si mesmo? De que forma?).

Por fim, resuma a sua avaliação sobre o ser humano enfermo. Quem é, como sente, como pensa, o que faz? Mostrou-se afável, colaborador, rebelde, antagônico, bom informante? Fala muito ou é lacônico? Simpático ou antipático? Por quê? Colaborou com a entrevista? Forneceu informações confiáveis? Como a doença interferiu na sua vida? Como está enfrentando tais interferências? É capaz de aderir ao tratamento, seguindo à risca instruções e prescrições?

Finalizando

O médico mais eficaz é aquele capaz de transformar o exercício da entrevista num grande momento para si e para o paciente. Num agora sem pressa nenhuma (mesmo que acredite que não tem tempo suficiente). Por mais breve que seja, o encontro entre médico e paciente deve ser acolhedor, seguro, gratificante, alimentado por rara empatia que só acontece se existe algo mais do que idéias ditas com palavras.

A presença do outro é sempre significativa: para o entrevistador, a presença do entrevistado; para o entrevistado a presença do entrevistador. Ou seja, a interação humana possui mão dupla.

Pode ser experimentada como inibidora, liberadora, organizadora. Isto porque toda atividade é centrada na comunicação, no aqui/agora, de tal forma que o papel que o outro exerce na interação é sempre significativo. O resto é devaneio.

O médico deve cultivar dentro de si um sentimento humanístico de compreensão empática. Deve adentrar a problemática fundamental do paciente, com a percepção aguda de que ele é um todo multiaxial constituído pelas interfaces mental, somática, social e pessoal, que funciona dentro de um contexto específico.

Na hora certa, o médico precisa exercitar a sua competência de cuidador e curador utilizando o saber adquirido, a palavra adequada, o carinho esperado, o apoio confortador.

Bibliografia consultada

HALEY, Jay, Terapias não-convencionais, as técnicas psiquiátricas de Milton H. Erickson, Summus Editoria1, São Paulo, 199l.

DAVIS, Flora, Comunicação não-verbal, Summus Editorial, São Paulo. 1970.

Stewart, Moira e at., Medicina centrada na pessoa, Transformando o método clínico, Artmed, 2ª. Edição, Porto Alegre, 2010.

LEADER, Darian, CORFIELD, David, Por que as pessoas ficam doentes? Como a mente interfere no bem estar físico, Best Seller, Rio de Janeiro, 2009.

BIRD, Brian, Conversando com o paciente, Livraria Manole, São Paulo, 1975.

DE SÁ. Cristina, O cuidado do emocional em saúde, Atheneu, São Paulo, 2010.



[1] O médico pode fazer perguntas sistemáticas, mas deve deixar espaços para que o paciente partilhe com o seu discurso de maneira livre e espontânea. Desta maneira é possível observar como o paciente se organiza mentalmente e, inclusive, ajudá-lo a organizar-se.

[2] Entrevista semi-estruturada é aquela que parte de certos questionamentos básicos que o paciente vai respondendo, de maneira ativa e espontânea, seguindo a linha de seu pensamento e de suas experiências, a partir do foco principal colocado pelo médico.

[3]

[4] FÉDIDA, Pierre, Dos Benefícios da Depressão - Elogio da Psicoterapia.

[5] Empatizar é ser capaz de imergir no mundo subjetivo do paciente e de participar de sua experiência na extensão em que as comunicações verbais e averbais permitam.

[6] Diz-se, há desqualificação da comunicação quando os interlocutores interagem invalidando a própria comunicação ou a do outro.

[7] 1 O aspecto, a figura de um corpo tal como se apresenta à vista. 2 O conjunto de características de forma e configuração que permite um grupo de indivíduos se diferenciar facilmente de outro grupo. 3 Med. Alteração do aspecto da face em decorrência de certas patologias (fácies hipocrática). Dicionário Aulete

[8] O estado mental de uma pessoa corresponde às significações que ela atribui às outras pessoas e ao seu meio ambiente, de tal forma que identificar essas significações equivale a diagnosticar o seu estado mental.



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