sábado, 5 de maio de 2007

O MILAGRE DO ACOMPANHAMENTO AVERBAL

José Pinto de Queiroz Filho

Meu consultório particular, divido com uma Neonatologista que também faz Homeopatia; fica em Vilas do Atlântico no terceiro andar do edifício Vilas Trade-Center Odonto-Médico. É constituído de uma sala de espera (com banheiro); sala de atendimento (também com banheiro privado); maca, mesa, cadeiras, armários. Dentro, ambiente confortável, aconchegante, com ar condicionado e alguns quadros pendurados na parede, pintada com cores neutras.

A cadeira onde me sento foi colocada de costas para uma ampla janela com vistas para área arborizada. Habitualmente fechada, tem cortinas que me protegem dos raios solares.

Como resido em Salvador, distante de Vilas alguns quilômetros, antes de me deslocar ligo para Tatiana, minha recepcionista, para saber quantas primeiras consultas estão marcadas.

Chego, pontualmente às oito horas da manhã. Existem duas primeiras consultas. Ao adentrar a sala de espera, cumprimento as pessoas e ingresso na sala de exames. Sento-me, arrumo alguns instrumentos na mesa e, logo a seguir, entra Tatiana trazendo os prontuários.

Comento rapidamente questões pendentes e, imediatamente após, peço-lhe para mandar entrar o primeiro paciente. Espero, de pé, próximo a porta. Entra o paciente, um adolescente, junto com a mãe. Já li os dados de identificação no prontuário - B, 17 anos, leucodermo, atlético, soteropolitano, católico (não praticante) residente em Salvador, BA (mora com os pais), concluinte do segundo ciclo -, e, por isso, posso cumprimentá-lo chamando-o pelo primeiro nome.

Bom dia B, bom dia senhora A!– A mãe responde ao cumprimento, o adolescente não.

Sentamos-nos. Tenho o cuidado de deslocar a cadeira para ficar frente-a-frente com B. Ao lado dele, sua mãe começa a falar rápido e ansiosamente.

- Doutor, resolvi pagar uma consulta particular a um especialista para resolver o problema de meu filho...

-...sim...

- ... ele está faltando a escola há quase dois meses, há 15 dias parou de falar. Não diz uma palavra. Fica bastante irritado em casa. Briga com todo mundo. O pai já quis bater nele, eu é que não deixei. Mas, agora, eu também estou perdendo a paciência... dorme o dia todo e a noite não dorme direito, está ficando agressivo até comigo. Enquanto a mãe fala, o adolescente permanece sentado, imóvel, mudo, piscando os olhos rapidamente...

- Ele foi internado no hospital São Rafael e ficou lá quase um mês, foi examinado por um neurologista, fez um monte de exames – mostra duas sacolas abarrotadas de papéis - e, só muito depois, me disseram o que eu já tinha dito pra eles: É preciso levá-lo a um psiquiatra... (faz uma pausa para recuperar o fôlego).

- Continue! (O que irá me dizer ainda?).

- Sabe doutor, meu plano de saúde é muito bom e eles decidiram me explorar. Estavam interessados nisto (esfrega o indicador com o polegar, sinalizando dinheiro).

- (Não espero mais. Faço uma transição brusca, reorientadora, e pergunto): - O que aconteceu com o seu filho antes de ir para o hospital?

- Ah, doutor! Foi há mais ou menos dois meses, quando tudo começou. Estava em casa, tranqüila, cuidando de meus afazeres, quando o telefone tocou. O diretor da escola pediu-me para ir buscar o meu filho que tinha desmaiado na sala de aula.

-. Meu marido estava no trabalho liguei para avisar a ele e fui correndo, de táxi! Na escola, encontrei meu filho na sala do diretor. Estava um pouco tonto, aéreo. Perguntei o que tinha acontecido e disseram que estava na sala, no intervalo da aula, quando subitamente caiu!

- Informaram se caiu, bateu a cabeça, perdeu a consciência?

- Pelo que me disseram, ele perdeu a consciência, caiu e bateu a cabeça fortemente no chão!

- Demorou em acordar?

- Não sei, já o encontrei acordado. O diretor me recomendou que eu levasse ele a um médico neurologista! Meu marido chegou, fomos para o São Rafael -, maldita hora-, e lá ele foi visto por um clínico, depois pelo neurologista o Dr. X que recomendou o internamento para fazer exames e mantê-lo em observação...! (Faz outra pausa, respira fundo e continua).

- O menino ficou internado quase um mês e eu dizia ao médico: Dr., não é melhor consultar um psiquiatra? E ele: Ainda não, vamos concluir os exames e continuar observando. Enquanto isso, o meu menino continuava tomando drogas pesadas. Chegava lá, ele não me reconhecia, tinha dificuldade de falar e não queria se alimentar.

- Então, o médico lhe deu alta?

- Depois de 28 dias, e sabe o que me disse? Leve os exames e procure um psiquiatra.

- Deixe-me ver os exames...!

- Abre as sacolas e começa a colocar os exames sobre a mesa. A maioria, repetidos. Exames bioquímicos, raio X de crânio (3), ressonância magnética (2), dentre outros. Todos absolutamente normais.

- Chegou a dizer de que suspeitava para procurar um psiquiatra?

- Olha para o filho, aproxima a boca de meu ouvido e murmura: Disse que ele podia ter esquizofrenia... uma doença de louco. (Já estou começando a ficar incomodado com a situação da mãe falando sem parar e do filho calado, extático. Vou tomar uma providência).

- Posso lhe pedir um favor?

- Pode, sim, doutor!

- Eu gostaria de falar a sós com B!

- Mas ele não está falando...

- .... tudo bem. Mesmo assim, gostaria de ficar sozinho com ele por um instante. A senhora me permite?

- Mas é claro doutor! (Recoloca os exames nas sacolas, as pega, uma em cada mão, levanta-se e dirige-se para a porta, dizendo): - Vou esperar lá fora. Quando o senhor terminar, me chame!

- Chamo sim!

Construindo uma interação

Ficamos a sós eu e B -, que está mudo e sentado na mesma postura inicial. Os olhos continuam piscando... Preciso me comunicar com ele, mas como? Não com palavras, isso tem sido tentado sem resultado. Fazer, então, o quê? Espere, ele está piscando. Lembro-me de uma hipótese da Teoria da Comunicação Pragmática: as pessoas não podem não se comunicar (1). Qualquer comportamento que ocorra num contexto interpessoal é informação. Começo a piscar também no mesmo ritmo de B, olhando nos olhos. O que pretendo com isso, ainda não sei claramente. Parece estar havendo uma troca ou, no mínimo, ação e reação. Já estou ficando cansado. Paro de piscar e acompanho seu piscar, de forma bastante discreta, com o dedo indicador da mão direita. Após alguns minutos reduzo o ritmo do dedo e observo que ele reduz o ritmo das piscadas. Acredito, estabeleci contato. Paro o dedo e ele pára de piscar. Então começo a falar.

- Estamos a sós neste ambiente confortável, com uma temperatura agradável. O sol lá fora, as árvores, o verde, o silêncio. (Esforço-me para que se sinta seguro, à vontade, por isso cito eventos tranqüilizadores que estão ocorrendo no aqui/agora).

- Poderíamos aproveitar para conversarmos um pouco. Mas só aquilo que você puder conversar. Nada mais! (Observo, ele está com o rosto mais relaxado. Suavizou a tensão dos braços. Já não segura a cadeira espasmodicamente. O relaxamento muscular está acontecendo a olhos vistos). Continuo:

- Você tem dezoito anos. É uma boa fase de vida. Ocorrem tanto coisas agradáveis quanto desagradáveis. Já vivi essa fase também. Você estuda numa escola. Eu também estudei. Eu gostava muito de uma matéria, a biologia. (Olha para mim! ). Prossigo: Você também deve ter uma matéria de que mais gosta. De que é que você mais gosta? (Faço a pergunta, sem saber se vou obter resposta. Sua boca se contrai grotescamente; parece que está se esforçando para falar).

- FÍSICA! – a palavra sai em jato, como se expelida por um esforço máximo.

- Física. Excelente escolha. (Olho para a lâmpada fluorescente, acesa). Podemos entender o mundo com a física. Esta lâmpada, por exemplo –, aponto e ele olha. A sua luz é explicada pela física. Parabéns pela escolha. (Vou tocar em outro ponto comum aos adolescentes).

Na minha época, tínhamos namoradas. Como é o nome de sua namorada? (Agora, arrisco tudo. Faço uma pergunta direta que ele poderá responder ou não. E se não responder interromperá nossa tênue comunicação e terei de começar tudo de novo).

- VIRGÍNIA!! (Novamente outra resposta monossilábica que parece ter sido ejetada).

- Bonito nome. Namorada nos dá muito prazer, mas, às vezes, nos causa sofrimento. (Tenho a sensação de que a interação está sendo construída tijolo a tijolo... Lá vou fazer outra pergunta direta... arriscar outra vez. Dará certo?)

- Seu namoro está lhe dando prazer ou desprazer?

- DESPRAZER!! – terceira resposta monossilábica, imediata, em jato.

- Está lhe fazendo sofrer? Seus olhos começam a lacrimejar, baixa a cabeça e começa a chorar, convulsivamente. (Não interfiro. Espero... passa-se um tempo. Parece estar recuperando o controle emocional... pára de chorar, olha para mim, tenho a sensação de que vai falar, e muito... A narrativa sai aos borbotões!).

- Minha namorada brigou comigo. Terminou tudo. Eu não tive culpa de nada. Ela é muito ciumenta, sabe! Pensei até em deixar pra lá. Pensei, ora, logo arranjo outra, mas que nada! Fui para casa, não dormi a noite toda. Tive até vontade de me matar. Mas não tive coragem. Decidi. Amanhã resolvo tudo na escola. No outro dia ao chegar a escola esperei o intervalo da aula para falar com ela. Queria esclarecer tudo. Chamei-a, mas ela simplesmente me ignorou. Saiu da sala com duas amigas, deixando-me sozinho. Tive uma raiva mortal. Senti uma forte tontura e fui obrigado a me segurar numa cadeira para não cair de vez.

- Você desmaiou?

- Não me lembro. Disseram que sim. Só me recordo de meu professor e colegas me levantando do chão. Depois me carregaram para a diretoria. Fiquei lá, parado, sem vontade de fazer nada. Falavam comigo, mas não ouvia. Nem parecia que era comigo. Pra mim o mundo tinha se acabado. Depois chegaram a minha mãe, o meu pai e me levaram para um hospital. Fiz vários exames. Só vivia fazendo exames, tomando remédio e dormindo, até que meus pais foram me buscar e me levaram para casa. Não quis voltar para a Escola. Queria ficar em casa sozinho, trancado no meu quarto. Meu pai não aceitou. Começou a brigar comigo. Uma vez o enfrentei pra valer. Um dia, acordei sem conseguir falar. Meus pais insistiam, e nada. Então me trouxeram até o senhor.

- Você contou a história de sua namorada a alguém?

- Não, nem aos meus pais. Senti vergonha...

- O que você está sentindo por ter me contado?

- Acredite, eu nem sabia que ia falar (sorri), quanto mais contar! Mas estou me sentindo melhor!

- E o que vamos fazer agora?

- Não sei, o senhor é quem decide!

- Vamos, então, fazer um acordo?

- Vamos!

- Para começar, o que pretende fazer, depois de me ter contado a sua história?

- Fazer, como?

- Por exemplo, você quer voltar para a escola de hoje a uma semana, ou de hoje a 15 dias? (aqui, utilizei o chamado duplo vínculo) [1].

- 15 dias...!

Você está dormindo bem?

- Dormindo demais. A maior parte do tempo estou dormindo!

- Talvez porque esteja tomando muito remédio. Vou diminuir as doses, um pouco de cada vez, porque se tirar tudo de uma vez poderá lhe fazer mal. Também gostaria de revê-lo, um dia antes de seu retorno ao colégio!

- OK!

- Que tal, se chamássemos sua mãe agora?

- Por mim, tudo bem...!

Ligo o interfone e peço para Tatiana reintroduzir a senhora A. Entra, carregando as mesmas sacolas recheadas de exames; senta-se e pergunta:

- E então doutor!

- Senhora A, nós, eu e seu filho, acertamos algumas coisas que gostaríamos de lhe contar... (faço uma pausa, intencional) ... Mas, é melhor que ele mesmo conte...!

- Bem, eu e o doutor decidimos...

- (Ao ouvir o filho falando, A arregala os olhos, inspira súbita e profundamente, emite um som agudo e gutural e exclama, incrédula): HIII!!! ELE ESTÁ FALANDO...!!!

- (O filho aproveita para completar a informação):

Nós decidimos, eu e o doutor, que voltarei à escola de hoje a 15 dias, mas antes virei até aqui para fazer uma revisão. Ele, também, vai reduzir as doses dos remédios que estou tomando.





[1] Pseudo opção múltipla. Na verdade, qualquer que seja a escolha, a resposta é a mesma - , no caso, retornar à escola.

Quem sou eu

Minha foto
Um ser humano, amigo, que gosta de pessoas; e que tem muitas dúvidas e poucas certezas.
 

Enter your email address:

Delivered by FeedBurner